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NOTA: Este texto faz parte do conteúdo complementar deste livro. Devido ao formato compacto da coleção, algumas passagens da primeira versão do livro foram retiradas, mas estão disponíveis neste website (acessíveis através de códigos QR ao longo do livro) permitindo acesso digital ao conteúdo adicional.

Mais sobre psicadélicos e saúde mental

Depressão e ansiedade

Com o uso de psicadélicos clássicos, a investigação no tratamento da depressão é atualmente a mais avançada, com alguns ensaios clínicos controlados com psilocibina que demonstraram em elevado potencial terapêutico. Os participantes destes estudos têm recebido uma ou duas doses de psilocibina, com níveis variáveis de acompanhamento psicológico. Os efeitos são tipicamente rápidos, embora a duração destes estudos seja atualmente limitada. A questão da duração dos efeitos e a possibilidade da relevância de repetir sessões psicadélicas algum tempo mais tarde, são alguns dos temas discutidos neste momento. Não obstante, o facto de apenas uma ou duas sessões terapêuticas produzirem efeitos antidepressivos rápidos e consideráveis em magnitude é algo notável e pode vir a representar uma mudança de paradigma no tratamento desta doença.  

Ao contrário da psilocibina, a ketamina, que já é aprovada para uso clínico da depressão numa formulação de spray nasal (esketamina), tem uma longa história de investigação que sustenta a sua eficácia na depressão. Atualmente a ketamina é usada em várias clínicas e serviços de saúde em Portugal, sobretudo para o tratamento da depressão e em contextos onde o acompanhamento psicoterapêutico está presente, em maior ou menor escala. Porquanto os resultados a curto prazo sejam notáveis, a eficácia a longo prazo das terapias assistidas por ketamina está também por determinar de forma conclusiva. Não obstante, na maior parte dos países, esta representa a única alternativa legal para aceder a uma terapia com psicadélicos. 

Vários estudos têm também avaliado os efeitos de psicadélicos na depressão e na ansiedade em pessoas tratadas para outras condições. Um dos casos mais interessantes é o seu uso em doentes terminais ou com um diagnóstico potencialmente terminal. A este respeito, tanto psicadélicos clássicos (psilocibina e LSD) como psicadélicos atípicos (ketamina e MDMA) têm demonstrado efeitos positivos na depressão, ansiedade, qualidade de vida, e em dimensões espirituais associadas a uma melhor aceitação da sua condição, e da própria morte. Outras áreas onde a depressão tem sido diminuída, complementarmente ao alvo principal da intervenção, incluem o transtorno bipolar, a ideação suicida, e o sofrimento associado ao período pós-parto.

Outro composto potencialmente útil no tratamento da depressão, ansiedade e várias outras doenças é a bebida ayahuasca, que inclui o psicadélico DMT, entre várias outras moléculas. Em parte devido a esta composição muito rica, e também por dificuldades práticas na sua manipulação em ambientes controlados (face à sua composição e dosagem), a investigação clínica com ayahuasca para a saúde mental é limitada. Contudo, alguns estudos sugerem uma ação antidepressiva e ansiolítica, bem como efeitos potencialmente positivos em muitas outras condições, incluindo algumas adições. 

Os estudos especificamente focados no tratamento da ansiedade são em menor número que aqueles focados na depressão, sendo a ansiedade frequentemente avaliada juntamente com a depressão em muitos estudos na área da saúde mental. Uma exceção, em fase inicial de avaliação, é o tratamento da ansiedade social com psilocibina, nomeadamente em adultos com transtorno do espectro autista. Embora estes estudos ainda estejam nos estágios iniciais, eles oferecem uma visão promissora do potencial terapêutico dos psicadélicos para uma gama mais ampla de condições de ansiedade.

Adição

O tratamento de adição a substâncias como o tabaco, o álcool e outras substâncias psicoativas com o uso de psicadélicos é uma das áreas de investigação mais promissoras. Aliás, é uma das mais antigas, com investigação datando desde os anos 50 do século passado. Nos últimos 25 anos, o tratamento de adições com o uso de ketamina, psilocibina, MDMA ou ibogaína sugerem um elevado potencial terapêutico, embora os estudos sejam ainda em número reduzido. 

O tratamento do alcoolismo é aquele onde existe maior evidência científica, nomeadamente com o uso de psilocibina, mas também de ketamina e, mais recentemente (e ainda de forma preliminar) do MDMA. No caso da psilocibina, ensaios clínicos recentes com duas doses de psilocibina e um programa de psicoterapia e modificação comportamental revelaram resultados notáveis ao fim de 8 meses. Após resultados iniciais promissores, a psilocibina está também a ser testada para auxiliar na cessação tabágica, na conhecida Universidade Johns Hopkins, tendo recebido para isso o primeiro financiamento público da era moderna para um estudo com psicadélicos atribuído pelo NIDA (National Institutes for Druds and Addition). Esta é uma secção do gigante National Institutes of Health (NIH), o departamento do governo nos EUA que gere todo o financiamento para a saúde.   

A ketamina tem também sido estudada como tratamento para adições, particularmente a dependência de álcool e opiáceos, revelando bons efeitos e em pouco tempo. Por fim, temos o caso particular da ibogaína, um composto derivado originalmente da planta africana Iboga, que se tem revelado particularmente eficaz no tratamento da adição a heroína e outras substâncias com elevado potencial aditivo, ao reduzir em simultâneo os sintomas de abstinência e o desejo de consumo. 

Em maior ou menor grau, todas estas substâncias têm simultaneamente uma ação farmacológica e uma ação psicológica. Acredita-se que a ação psicológica, em particular, pode ter impacto em processos importantes – como a flexibilidade cognitiva, novos insights, ou obter uma perspetiva mais ampla e clara sobre o que é pessoalmente mais significativo – que reforçam a capacidade e a motivação para a mudança, que pode ser potenciada com recurso a uma psicoterapia coadjuvante.

Ainda a respeito de comportamentos relacionados com a saúde, nomeadamente os não têm uma componente aditiva (casos da alimentação, atividade física ou da meditação), existem vários estudos com inquéritos à população que sugerem que, em condições de vida real, pessoas que usam psicadélicos apresentam comportamentos mais saudáveis, bem como uma menor prevalência de doenças crónicas. A confirmar-se em estudos futuros, isto terá implicações interessantes no potencial preventivo dos psicadélicos, quer para a saúde mental quer para a saúde física[1].     

Perturbação de stress pós-traumático

Das terapias com psicadélicos, o tratamento da perturbação de stress pós-traumático (PSPT) com MDMA é o que está em fase de avaliação científica mais avançada e poderá ser o primeiro a ser aprovado para uso médico nos EUA. Dois estudos decisivos neste contexto, publicados em 2021 e 2023 na importante revista Nature Medicine, mostraram que um programa com três meses de duração incluindo três sessões de terapia assistida por MDMA é não apenas seguro, como eficaz, na diminuição de sintomas de PSPT e problemas associados. Curiosamente, dados do mesmo ensaio clínico mostraram que o tratamento também reduziu o consumo de álcool nos participantes, um problema frequente na PSPT. Estes estudos sugerem que o MDMA, através da sua ação conjunta na serotonina, oxitocina, dopamina e também na amígdala (centro de memória afetiva), pode potenciar a terapia, ao atenuar o medo e promover a relação terapêutica entre participantes e terapeutas, contribuindo para um processamento emocional mais eficaz de traumas passados.

Embora a investigação sobre a psilocibina e o tratamento de PSPT esteja numa fase mais preliminar, os indícios apontam para a possibilidade de que esta substância possa também ajudar na redução da reatividade emocional e promover o bem-estar em indivíduos afetados. Tanto o MDMA como a psilocibina parecem facilitar a reconsolidação da memória, reduzindo o seu impacto emocional. É de salientar que o tratamento com psicadélicos para a PSPT é sempre acompanhado de apoio (psico)terapêutico especializado e é por isso designado de (psico)terapia assistida por [psicadélico em causa].

Outras indicações

Para além das doenças abordadas em cima, para as quais a ciência augura a legalização, para fins médicos, de terapias com psicadélicos, várias outras são frequentemente citadas por estarem na linha seguinte de avaliação. Por exemplo, o tratamento da anorexia nervosa com o uso de psilocibina pode vir a ter evidência de suporte já em 2024, com base num ensaio clínico conduzido no Imperial College em Londres, que acolhe um dos mais importantes centros de investigação na área. Outros estudos mais pequenos foram já realizados ou estão planeados com vista a confirmar esta hipótese.

A área da dor (dor crónica, fibromialgia, dor neuropática, dor do membro fantasma, cefaleias e enxaquecas) está também entre as mais promissoras neste domínio. Existe já bastante evidência de estudos de qualidade média (observações) mas muitos ensaios clínicos a começar, sobretudo com psilocibina. Uma situação similar existe no caso do Transtorno Obsessivo-Compulsivo, com alguma evidência preliminar de efeitos positivos, e estudos confirmatórios em curso. Finalmente, existe o interessante caso do Transtorno Bipolar, uma condição que é habitualmente considerada uma contraindicação para a toma de psicadélicos devido ao risco de a mesma poder espoletar um episódio maníaco. Este risco pode, contudo, não ser universal a todas as pessoas com esta perturbação, nomeadamente em função do tipo de bipolaridade. Por exemplo, um estudo recente, embora pequeno, mostrou que pessoas com Transtorno Bipolar do tipo II (em que os episódios depressivos predominam sobre as crises de mania) viram a sua depressão diminuir e não reportaram um aumento episódios de mania. Contudo, estudos populacionais mostram informação oposta, com uma percentagem considerável de inquiridos com Transtorno Bipolar, de ambos os tipos, que utilizaram psicadélicos a reportarem agravamento de sintomas. Para já, este é um tema em aberto. O que parece ser mais consensual é que todos os possíveis tratamentos aqui descritos devem ser implementados no contexto de um processo psicoterapêutico coadjuvante.


[1] Este tema é objeto de um programa de investigação, com vários estudos em curso, na Universidade de Lisboa (Faculdade de Motricidade Humana) e em parceria com vários grupos de investigação estrangeiros. A Universidade de Coimbra será atualmente a outra única Universidade pública em Portugal com um programa de investigação especificamente sobre psicadélicos (estudos com efeitos da ayahuasca e nível psicológico e neurofisiológico).

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