NOTA: Este texto faz parte do conteúdo complementar deste livro. Devido ao formato compacto da coleção, algumas passagens da primeira versão do livro foram retiradas, mas estão disponíveis neste website (acessíveis através de códigos QR ao longo do livro) permitindo acesso digital ao conteúdo adicional.
Outros riscos: dependência psicológica e viagens não-transformadoras
Não é claro que aconteça dependência psicológica com o uso de psicadélicos. Aliás, a própria expressão – usada para descrever uma necessidade intensa de algo para aliviar emoções, lidar com o stresse, e encontrar conforto emocional – não é utilizada como um termo técnico na área da Saúde Mental. Não obstante existirem pessoas que usam psicadélicos com uma regularidade que poderia ser tida como preocupante – por exemplo, pessoas que repetem com bastante frequência a ida a retiros psicadélicos – o verdadeiro risco que isto representa é difícil de estimar e estes comportamentos não são habitualmente considerados patológicos ou desviantes. Na verdade, provavelmente não seria muito diferente a nossa avaliação de alguém que corre maratonas com muita regularidade, mesmo resultando numa frequência de lesões bastante acima da média. Ou alguém que bebe quatro ou mais porções de álcool diariamente (algo comprovadamente nocivo para a saúde) mas raramente atingindo a embriaguez. Pelo contrário, o mais provável é todos estes comportamentos serem secundários a questões pré-existentes do foro psicológico ou sócio-cultural. E que sejam, de alguma forma, “compensatórios”, representando uma tentativa, muitas vezes inconsciente (mas porventura útil) de alcançar algum conforto ou atingir metas ou estados tidos como importantes, mesmo com algumas consequências negativas.
Quando não prejudica terceiros e quando o utilizador está na posse da informação mais relevante (e.g. quais os riscos do álcool para a saúde), o equilíbrio entre benefício e riscos de um dado padrão de consumo é uma matéria do foro individual. Assim, na ausência de uma dependência tal como definida por critérios objetivos na área da Saúde Mental (e.g. apresentar sintomas de abstinência ou disrupção no funcionamento com perda de controlo e abandono de atividades habituais), definir o que comporta uma relação disfuncional ou problemática com uma substância psicoativa, psicadélica ou não, não é linear e merece mais discussão do que aqui se pode empreender.
Um caso diferente é o de adultos que decidem – conscientemente, de forma intencional e respeitando as boas práticas – usar psicadélicos com alguma frequência, em função dos benefícios que sentem, a curto mas também a longo prazo. Nestes casos, talvez a comparação mais adequada seja com pessoas que são assíduas em alguma atividade que apreciam bastante ou lhes traz benefício, sem dano notório. Novamente, pode olhar-se para o caso da prática frequente de um desporto, mesmo em doses aparentemente inusitadas (para quem vê de fora); para o hábito constante de viajar e conhecer outros locais, em detrimento de mais tempo passado com os amigos e família; de dedicar bastante tempo a atividades contemplativas (e.g. numa igreja); ou de pessoas que vão regularmente fotografar a Via Láctea, percorrendo centenas de quilómetros até um local sem luz humana por perto. Todas estas atividades implicam uma motivação elevada e uma perceção dos respetivos ganhos que outras pessoas podem não compreender ou aceitar, manifestando até estranheza com tais comportamentos. Contudo, provavelmente não diríamos que representam uma dependência psicológica ou um desvio comportamental preocupante.
É também importante considerar, nomeadamente no caso dos psicadélicos, que existe uma variedade considerável de substâncias, com efeitos e perfis de risco diferentes. Muitos utilizadores bem informados, e que fazem uso regular destas substâncias, realizam algum planeamento quanto ao uso de cada substância no tempo, precisamente para minimizar, de uma forma integrada, as suas eventuais consequências negativas. Como exemplo, o potencial risco de ingerir um psicadélico clássico todos os meses é diferente, e neste caso provavelmente menor, do de ingerir MDMA com a mesma frequência.
Um problema menos discutido, e também pouco investigado, acerca da toma regular de psicadélicos é a possibilidade de a viagem provocar alterações no padrão de sono que durem mais tempo do que seria de esperar. É conhecido que muitos psicadélicos (mas não todos) promovem o estado de vigília e parece ser razoavelmente frequente que, na noite, ou noites, após uma toma, o sono do utilizador seja diferente do habitual (e.g. mais curto ou leve). Normalmente isto é transitório, havendo também pessoas que referem que os psicadélicos as ajudaram precisamente a regular o sono. Contudo, há também relatos de perturbações no sono que duram mais do que alguns dias, ou até semanas. Neste momento, os estudos disponíveis indicam que é relativamente comum que participantes de ensaios com psicadélicos refeiram ligeira insónia, ou precisarem de dormir mais que o normal, após a sessão. Mas nenhum destes estudos indica problemas de sono a longo prazo. Em direção oposta, observações em estudos com uso em vida real e outros relatos reunidos informalmente indicam que é de facto possível acontecerem distúrbios de sono mais longos e preocupantes. Infelizmente, até à data, não se sabe que fatores determinam estas ocorrências nem o que fazer para as evitar.
A uso da palavra “viagem” para nos referirmos a uma experiência psicadélica não é acidental e são várias as analogias possíveis entre este tipo de viagem (da mente ou da consciência) e uma viagem no sentido tradicional. Ambas são demarcadas por um início e um fim relativamente fáceis de identificar e que separam a viagem do estado ou vivência habituais. Ambos conduzem a experiências fora do normal e muitas vezes inesperadas e imprevisíveis. As duas exigem alguma preparação, envolvendo processos de planeamento que antecipam necessidades ou contingências específicas. E ambas envolvem a inevitável formulação de expetativas. Ao falar de riscos da toma de psicadélicos, justifica-se também abordar a possibilidade, e as consequências, de uma dada experiência simplesmente não corresponder à expetativa criada antes.
Embora não seja habitualmente referido como tal, o risco da expetativa gorada é um aspeto relevante, considerando que o nível de investimento pessoal – material, de tempo, emocional, ou de outros recursos – pode ser assinalável, assim como podem ser elevados o desejo e a esperança em obter um determinado resultado. Por esta razão, é importante que cada utilizador esteja consciente de tudo o que pode (ou não) acontecer durante, e sobretudo o que pode, ou não, resultar de(pois de) uma experiência psicadélica. Se há algo em que todos os especialistas e psiconautas concordam é que cada experiência psicadélica é única, até para o mesmo utilizador e para a mesma substância.
Como exemplo extremado, pode citar-se o caso das famosas experiências de “nada”. São situações em que o utilizador, por qualquer razão de natureza fisiológica (e.g. má absorção ou excessiva metabolização da substância; excessiva dor física ou enjoo) ou psicológica (e.g. muita ansiedade, excessiva atividade mental e necessidade de “controlo”), ou por outra razão desconhecida, não sente alguma alteração digna de nota no seu estado mental, mesmo com uma dose elevada. É fácil de perceber que não são situações fáceis de gerir, em função das expetativas acumuladas, incluindo em contextos de utilização intencional e acompanhada por facilitadores e/ou profissionais de saúde mental.
Ao invés das “nadas”, que são incomuns, é frequente o utilizador deparar-se com uma experiência leve e apenas vagamente positiva ou negativa (quando esperava sentir-se “em união com o Cosmos” ou ter uma “experiência mística”!). Ou viver uma experiência demasiado confusa ou estranha sem conseguir dela retirar qualquer significado. Ou simplesmente não se recordar de nada relevante da viagem. Ou relatar que sentiu apenas, por vezes durante várias horas, aspetos dolorosos ou negativos sem conseguir retirar nenhuma lição. Finalmente, pode ser uma desilusão, mesmo depois de uma experiência interessante, regressar à vida habitual e, aos poucos, perceber que nada de importante se alterou – depois de semanas ou meses de preparação e a ouvir referências à capacidade dos psicadélicos para causar “experiências transformadoras”. É um facto que, muitas vezes (talvez até na maioria das vezes), não acontecem transformações realmente importantes.
A este respeito, um dos temas mais discutidos na comunidade científica e terapêutica ligada à utilização de psicadélicos, prende-se exatamente com a influência que a crescente cobertura mediática do tema pode ter nas expetativas dos participantes de terapias com administração de psicadélicos, seja em contexto clínico de vida real, seja em estudos científicos. Ao contrário do que aconteceu no passado, as peças jornalísticas sobre este tema são hoje predominantemente positivas e focadas em casos de sucesso, o que inevitavelmente faz aumentar a expetativa de resultados positivos em quem as ouve, sobretudo se se trata de alguém em sofrimento e sem respostas para a sua condição – de saúde mental, física ou comportamental. Pessoas estas que poderão ver no propagado potencial dos psicadélicos uma derradeira tábua de salvação. Por exemplo, no caso de um tratamento de último recurso para uma depressão resistente, sentir resultados muito abaixo das expetativas pode resultar numa desilusão e até num estado de sofrimento superior ao inicial. Em estudos científicos, as elevadas expetativas dos participantes podem também influenciar os resultados e enviesar ou falsear as conclusões do estudo. Por esta razão estão a ser desenvolvidos métodos científicos cada vez mais eficazes para contrariar este efeito.