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A cultura psicadélica do século XX
A associação entre psicadélicos e artistas, escritores e filósofos foi uma constante da sua história no século passado. Também os primeiros académicos e “psicólogos psicadélicos”, como é o caso de Timothy Leary e Terrence McKenna foram tanto ou mais agentes culturais do que foram académicos. Embora o “pai” da Psicologia norte-americana, William James, tenha claramente usado substâncias psicoativas durante a sua vida, algo que parece ter informado o seu pensamento e escrita, a primeira figura com peso cultural a dedicar-se explicitamente ao tema foi o reconhecido escritor britânico Aldous Huxley, autor do livro Admirável Mundo Novo, que descreveu as suas experiências com mescalina no livro As Portas da Perceção, em 1954.
Depois disso, e até ao final dos anos 1960s’, escritores e pensadores como R.D. Laing, Allen Ginsberg, Ken Kesey e Michel Foucault (entre muitos outros) foram explícitos quanto à importância das suas experiências com estados expandidos de consciência no seu trabalho. Curiosamente, o mesmo aconteceu com alguns cientistas famosos como os Prémio Nobel Francis Crick (que imaginou a dupla hélice de DNA) e Terry Mullis (que inventou o PCR, técnica revolucionária para estudos genéticos). Finalmente, bandas de música popular como The Doors, Jefferson Airplane, Grateful Dead, The Beatles e Pink Floyd estão claramente associados à cultura psicadélica, tendo em conta a influência que o consumo de psicadélicos terá tido na sua obra. Foram também essenciais na disseminação do interesse por estas substâncias mas os Grateful Dead, em particular, tiveram uma participação especial na história dos psicadélicos uma vez que os seus concertos foram, durante muitos anos, um local de acesso fiável de LSD, antes e após a sua proibição.
Também os movimentos hippie, de libertação sexual, New Age, e outros com ligação a tradições orientais (como o Budismo e o Taoísmo) foram influenciados ou acompanharam a transmissão cultural que se associava a experiências psicadélicas por parte dos seus protagonistas e seguidores. Um bom representante de algumas destas correntes foi o psicólogo e líder espiritual Richard Alpert (mais tarde, Ram Dass), que cruzou várias destas linhas de pensamento, de investigador, a hippie, até se estabelecer como uma referência central do movimento New Age.
Paralelamente, a Ciência e a Medicina iam deixando também o seu legado cultural, através de figuras proeminentes como Albert Hofmann (o químico que sintetizou o LSD em 1938); Alexander e Ann Schulgin (ele químico; ela terapeuta informal) que sintetizaram centenas de novas substâncias psicoativas; e sobretudo Stanislav Grof, médico psiquiatra, autor e investigador, conhecido por ter acompanhado centenas de pacientes em viagem psicadélicas, sobretudo com LSD. Das personalidades citadas, Grof é o único ainda vivo à data da publicação deste livro.
A par do não-conformismo e de algum despeito pela autoridade instituída, um dos principais traços que definem a cultura psicadélica no século XX é a liberdade de pensamento. Liberdade sobretudo para explorar a própria consciência, o que tem óbvias implicações na forma de olhar para as possibilidades da mente humana em relação à sua própria evolução e relação do ser humano com o mundo físico, mas também com o mundo espiritual e com a transcendência. Pese embora alguns autores, como Stanislav Grof, tenham formulado teorias explicativas sobre o impacto da experiência psicadélica no entendimento da profundidade e capacidade de expansão da mente humana, ainda hoje se discutem quais os melhores mapas (da mente e do cosmos) para enquadrar a complexidade destas experiências. A Psicologia Analítica de base Jungiana, com origem no trabalho do psiquiatra e psicanalista suíço Carl Jung, é atualmente um dos modelos mais discutidos.
Para além da distinta arte psicadélica, que inclui pintores e artistas plásticos como Andy Warhol, Stanley Mouse, Wes Wilson e, mais recentemente, Alex e Allison Grey, um outro traço importante da cultura psicadélica é a sua irreverência e a busca por formas alternativas de vida em comunidade e relação com a Natureza. Encontramos ainda hoje vários elementos dessa movimentos, por exemplo, em centenas de comunidades alternativas por todo o mundo, ou em festivais, nomeadamente de música eletrónica.
Os anos 1960 e 1970’s foram também marcados por algumas referências culturais negativas associadas ao uso de psicadélicos, embora razoavelmente esporádicas. A mais afamada foi o presumível uso de psicadélicos pelo grupo liderado por Charles Manson, que viria a ser preso e condenado por vários homicídios premeditados na Califórnia. A popularidade das substâncias psicadélicas terá também, inevitavelmente, suscitado muitas formas e contextos de uso, vários dos quais em condições de segurança e conforto que hoje reconhecemos como desadequadas. Infelizmente, não está disponível suficiente informação epidemiológica para sabermos quantos acidentes associados, ou viagens psicadélicas com impacto negativo continuado nos utilizadores, ocorreram nesse período. Ainda hoje, a comunidade psicadélica apresenta algum prurido em olhar para o lado menos positivo do seu uso, não obstante o aparecimento de projetos dedicados a explorá-lo, como o Challenging Psychedelic Experiences Project (mais sobre este tema no livro).
Por último, sabe-se hoje que foram também organizadas várias iniciativas e projetos de investigação exploratórios, com uso de LSD e outros métodos, pelos serviços militares Norte-americanos e Canadianos nos anos 1950s e 1960s, em condições de claro desrespeito pelos direitos humanos dos participantes. O objetivo destes projetos, o mais conhecido dos quais foi designado de ‘MK-ULTRA’, seria avaliar o potencial das substâncias psicadélicas como ferramentas de guerra, sobretudo como métodos de contraespionagem (era altura da Guerra Fria). Não foram bem-sucedidos e foram progressivamente abandonados, mas deixaram um rasto histórico negro, com várias mortes e um forte impacto na saúde mental de centenas de pessoas envolvidas nas experiências.