O consenso atual é que a experiência psicadélica, nomeadamente com psilocibina, quando integrada num enquadramento terapêutico adequado, potencia a neuroplasticidade, estimulando insights valiosos e permitindo uma maior flexibilidade emocional. Contudo, a natureza exata da “terapia assistida por psicadélicos” continua em debate: será necessário uma psicoterapia estruturada ou apenas um suporte não específico para permitir uma experiência transformadora e duradoura?
A equipa canadiana responsável por esta revisão sistemática avaliou protocolos utilizados em ensaios com psilocibina para cinco indicações principais:
- depressão major e resistente ao tratamento (8 estudos);
- sofrimento psicológico associado a doenças graves como cancro ou VIH (7 estudos);
- dependências (4 estudos);
- perturbações obsessivo-compulsivas e relacionadas (2 estudos);
- perturbações alimentares (1 estudo).
No total, 901 participantes foram incluídos, em ensaios realizados entre 2006 e 2023. Só em 2023 publicaram-se dez dos estudos, evidenciando a rapidez com que o campo avança.
Estrutura comum, mas variações significativas
A maioria dos protocolos segue a estrutura tripartida herdada da primeira vaga de estudos psicadélicos:
- Preparação – várias sessões de educação sobre os efeitos da psilocibina, estabelecimento de relação terapêutica e definição de intenções.
- Sessão com psilocibina – administração em ambiente confortável e “não medicalizado”, com música, máscara ocular e postura relaxada, privilegiando o foco interno. Os terapeutas assumem uma postura não diretiva, assegurando segurança física e emocional.
- Integração – encontros pós-sessão, geralmente no dia seguinte e uma semana depois, para explorar conteúdos, significados, consolidar aprendizagens e aplicar insights na vida quotidiana.
Apesar desta base comum, observaram-se diferenças na intensidade da terapia (número e duração de sessões), na inclusão ou não de técnicas baseadas em psicoterapias validadas (como a Terapia de Aceitação e Compromisso (TAC), Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) ou Entrevista Motivacional (EM)) e no grau de participação ativa dos terapeutas na interpretação das experiências.
Em 59% dos ensaios clínicos, o modelo terapêutico incluiu técnicas validadas para a condição-alvo. Assim, nos estudos de depressão destacaram-se a TAC e o modelo ACE (“Accept, Connect, Embody”); nos de dependências, a Entrevista Motivacional e a TCC específica para o uso de substâncias. Nos ensaios clínicos ligados a doenças graves, abordagens existenciais e grupos de suporte expressivo. Outros estudos, contudo, limitaram-se a oferecer um apoio não específico, descrito como “terapia de suporte”, sem fundamentação em modelos estabelecidos.
Falta de padronização e riscos para a replicabilidade
Um dos principais alertas dos autores prende-se com a falta de padronização. Menos de metade dos ensaios utilizaram manuais terapêuticos ou protocolos formalmente estruturados, apenas 45% referiram programas de treino específicos dos terapeutas e em igual proporção se implementou monitorização da fidelidade às práticas previstas. Essa heterogeneidade compromete a comparabilidade dos resultados e levanta dúvidas sobre a generalização dos efeitos reportados.
Os próprios papéis dos terapeutas variaram, desde psicólogos e psiquiatras até enfermeiros, assistentes sociais, estudantes ou mesmo capelães. Esta diversidade, embora reflita a natureza interdisciplinar da área, pode contribuir para inconsistências nos cuidados prestados.
Implicações clínicas e regulatórias
À medida que a psilocibina se aproxima de possíveis aprovações regulatórias — nos EUA, a FDA já emitiu orientações sobre a necessidade de clarificar o contributo das componentes não farmacológicas — torna-se urgente definir boas práticas. Questões cruciais permanecem em aberto:
- Qual o mínimo de apoio psicológico necessário para potenciar os efeitos da substância?
- Até que ponto os benefícios dependem do enquadramento terapêutico versus a ação farmacológica?
- Como assegurar segurança, eficácia e custo-efetividade numa futura implementação em larga escala?
Conclusão: promessas e cautelas
A revisão conclui que, embora os ensaios mostrem resultados encorajadores na redução de sintomas depressivos, ansiosos e aditivos, a diversidade de enquadramentos terapêuticos e a ausência de diretrizes claras constituem um entrave sério à consolidação da psilocibina como intervenção clínica padronizada.
Para os profissionais de saúde mental, a mensagem é dupla: por um lado, há razões para otimismo perante uma ferramenta potencialmente transformadora; por outro, é essencial manter espírito crítico e exigir rigor metodológico, formação adequada e protocolos bem definidos antes de abraçar a psilocibina como prática clínica corrente.
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