Num recente episódio do podcast Somos Infinitos, a psicóloga clínica Ana Cruz — terapeuta de Respiração Holotrópica, psicodramatista e pioneira da psicoterapia assistida por psicadélicos em Portugal — propõe um reposicionamento claro: em vez de suprimir sintomas, trazer à luz o que a mente esconde. Com mais de 20 anos de prática, Ana Cruz conduz-nos aos “territórios menos visíveis” da psique, onde residem traumas silenciosos, memórias corporais e conteúdos do inconsciente coletivo.
A tese central é simples e exigente: a farmacologia convencional pode, em muitos casos, aplacar sinais de alarme que pedem processamento; a psicoterapia — sobretudo quando apoiada por estados expandidos de consciência — cria condições para reorganizar a informação com maior profundidade. Estes estados, também designados “holotrópicos”, facilitam o aflorar de memórias e afetos pré-verbais, permitindo que o corpo “fale” onde a linguagem falha. O objetivo não é o êxtase episódico, mas a integração: sentir e metabolizar o que foi evitado, para então reconfigurar padrões.
A psicoterapeuta sublinha três implicações práticas. Primeiro, o ritmo: trabalhar trauma requer respeito pelo tempo de cada pessoa e preparação cuidadosa. Segundo, o enquadramento: contexto, set e setting são determinantes — relação de confiança, segurança psicológica e suporte antes e depois da experiência. Terceiro, o alcance clínico: embora a investigação esteja em curso, há sinais promissores em depressão resistente; há também exploração emergente em dor crónica (como fibromialgia), perturbações do comportamento alimentar, dependências e até condições neurológicas. Mais do que “falar sobre” emoções como impermanência, medo ou relaxamento, o processo convida a vivê-las de modo encarnado, com potencial de abrir “novos caminhos” de perceção e comportamento.
O enquadramento teórico invocado remete para Stanislav Grof: camadas biográficas, perinatais e transpessoais podem emergir numa mesma jornada terapêutica. Aqui, o “vazio” não é ausência, mas espaço de liberdade — suspensão de condicionamentos a partir da qual escolhas mais alinhadas se tornam possíveis. Para Ana Cruz, a cultura contemporânea, acelerada e hiperprodutiva, dificulta o acesso a esse silêncio estruturante; a energia do feminino — a dimensão do acolhimento, do tempo interno, do não-fazer — fica sem espaço, com custos em depressão, ansiedade e desconexão. Outro eixo é a “sombra” junguiana: tudo o que consideramos indigno ou vergonhoso é empurrado para fora de vista. Estados expandidos, quando bem acompanhados, podem trazer essa matéria à superfície para trabalho real — nem catarse sem rumo, nem intelectualização estéril. A integração pós-sessão traduz-se em práticas concretas (regulação, vínculo, significado) que ancoram insights em mudança sustentável.
A mensagem final é prudente e esperançada: respeitar a ciência e o seu tempo, qualificar profissionais, assegurar condições legais e éticas — e, sobretudo, devolver à experiência vivida o lugar terapêutico que nunca deveria ter perdido.