Ciência

Espiritualidade: A Dimensão Esquecida da Terapia Psicadélica

Um artigo publicado na revista JAMA Psychiatry alerta para uma lacuna importante na forma como a medicina ocidental está a desenvolver as terapias assistidas por psicadélicos: a falta de atenção sistemática às experiências espirituais e existenciais que estas substâncias frequentemente provocam.

As terapias psicadélicas estão a viver um renascimento científico sem precedentes. Substâncias como a psilocibina, o LSD e o MDMA estão a demonstrar resultados promissores no tratamento de depressão resistente, perturbação de stress pós-traumático e ansiedade relacionada com doenças terminais. No entanto, uma equipa de investigadores do Centro de Psicadélicos e Espiritualidade da Universidade Emory, nos Estados Unidos, argumenta que algo fundamental está a ser negligenciado. Enquanto os ensaios clínicos se focam nos mecanismos biológicos e nos protocolos de psicoterapia, as experiências espirituais, existenciais, religiosas e teológicas — que os investigadores designam pela sigla SERT — raramente são integradas de forma sistemática no tratamento.

Experiências que Transformam a Visão do Mundo

Os dados são claros: entre 66% e 86% das pessoas que tomam psicadélicos em contexto terapêutico descrevem a experiência como uma das mais espiritualmente significativas das suas vidas. Estas vivências incluem frequentemente sensações de unidade com o universo, encontros com o sagrado, uma profunda sensação de significado, e mudanças na forma como as pessoas encaram questões fundamentais como a morte, a liberdade e a conexão com os outros.

Mais do que meros efeitos secundários interessantes, há evidência crescente de que estas experiências místicas podem ser mediadoras dos efeitos terapêuticos — ou seja, podem ser precisamente o mecanismo através do qual os psicadélicos produzem melhorias nos sintomas de depressão, ansiedade e dependências.

Os autores, liderados pelo psicólogo Roman Palitsky e pelo psiquiatra Charles Raison, alertam que ignorar estas dimensões não torna as terapias “neutras” ou “seculares”. Pelo contrário, pode criar riscos para os pacientes.

Quando um tratamento mexe profundamente com a visão do mundo de uma pessoa — como frequentemente acontece com os psicadélicos — sem que existam profissionais preparados para ajudar a integrar essas experiências, podem surgir dificuldades. Uma pessoa religiosa pode ter visões que desafiam a sua fé; um ateu convicto pode viver uma experiência mística que não sabe como interpretar. Sem apoio adequado, estas vivências podem gerar confusão, angústia ou até crises existenciais.

Há também o risco oposto: terapeutas podem, inadvertidamente, impor as suas próprias crenças espirituais aos pacientes, especialmente dado que os psicadélicos parecem aumentar a sugestionabilidade. Os investigadores sublinham a necessidade de respeitar a autonomia e os valores de cada pessoa.

O artigo não defende que todos os pacientes devam ter experiências espirituais, nem promove qualquer religião ou crença específica. O que os autores propõem é uma abordagem pluralista: os profissionais de saúde que administram terapias psicadélicas devem estar preparados para responder de forma competente e culturalmente sensível quando estas questões surgem — sejam os pacientes religiosos, agnósticos ou ateus.

Concretamente, recomendam que as equipas terapêuticas incluam capelães ou profissionais de saúde espiritual certificados, que já têm formação específica para lidar com questões existenciais e religiosas em contextos clínicos. Propõem também avaliações mais completas que incluam a história espiritual e religiosa dos pacientes, e protocolos para monitorizar não apenas os sintomas médicos, mas também potenciais efeitos adversos relacionados com a espiritualidade.

Os investigadores apoiam-se num corpo substancial de evidência sobre psicoterapias espiritualmente integradas. Uma meta-análise de 97 estudos, envolvendo mais de 7.000 participantes, mostrou que terapias que integram dimensões espirituais são pelo menos tão eficazes como as convencionais para melhorar a saúde mental, com benefícios adicionais em resultados relacionados com o bem-estar espiritual e existencial.

Estas abordagens têm sido aplicadas com sucesso em áreas como trauma, perturbações alimentares, doença mental grave, sobrevivência ao cancro e cuidados paliativos — precisamente os mesmos contextos onde as terapias psicadélicas estão a mostrar maior potencial.

O Futuro da Psiquiatria Psicadélica

À medida que a psilocibina e outras substâncias psicadélicas se aproximam de uma possível aprovação regulamentar para uso clínico, as questões levantadas neste artigo tornam-se cada vez mais urgentes. Como formar adequadamente os terapeutas? Que componentes psicológicos devem acompanhar a administração das substâncias? Como proteger os pacientes de potenciais efeitos adversos espirituais ou existenciais?

Os autores reconhecem que ainda há muito por investigar. Estudos específicos sobre os componentes SERT nas terapias psicadélicas estão ainda numa fase inicial. Mas argumentam que esperar por evidência perfeita não é uma opção ética quando já sabemos que estas experiências são prevalentes e potencialmente importantes.

Numa era em que a ciência está a redescobrir o potencial terapêutico de substâncias usadas há milénios em contextos sagrados, talvez não seja surpreendente que a espiritualidade se revele uma peça essencial do puzzle.

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