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CAPÍTULO I – Introdução (Setting)

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CONTEXTO SOCIAL E HISTÓRICO

Porventura, na nossa geração, não vamos encontrar um tema de mudança social tão grande como este [dos psicadélicos].
João Taborda da Gama

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Psicadélicos em português?

Com a publicação de Psicadélicos em Saúde Mental (Lidel, 2023), um manual técnico bastante completo sobre psicadélicos, com ênfase no seu impacto na saúde e na medicina, deu-se um passo essencial no acesso, em língua portuguesa, a informação sobre este tema. Dedicado sobretudo ao leitor que pretende aprofundar o domínio da história, terapia e ciência dos psicadélicos, a publicação inclui capítulos escritos por mais de trinta especialistas portugueses, apoiados na literatura científica e outras fontes de informação atuais.

Nos últimos anos ficaram também disponíveis alguns websites em Portugal sobre o tema, da responsabilidade de organizações que se dedicam ao tema, parcial ou totalmente, como a Associação Kosmicare, o projeto SafeJourney e a associação científica SPACE. Com a facilidade de tradução que a Inteligência Artificial atualmente permite, inúmeros textos disponíveis na Internet, sobretudo em inglês, podem ser lidos em português com enorme facilidade. No final deste livro estão indicadas algumas destas fontes de informação, selecionadas pela sua qualidade e interesse.

Com regularidade crescente, é igualmente possível assistir no nosso país a palestras, seminários e outras sessões públicas, virtuais ou presenciais, para discutir o tema dos psicadélicos na sociedade, frequentemente com a participação de especialistas nacionais ou estrangeiros. Não sendo um acontecimento novo, o Boom Festival, realizado bianualmente na região Centro de Portugal, é um ponto de encontro incontornável da música, arte e cultura psicadélicas, contando sempre com a presença de milhares de portugueses.

Em Portugal, faz-se também investigação científica sobre psicadélicos. Por exemplo, em janeiro de 2024 foi financiado pela União Europeia (6,5 milhões de euros) um estudo de grande dimensão sobre a utilização de um psicadélico para aliviar a depressão em pessoas com doenças incuráveis. Um dos quatro Centros de Investigação envolvidos na componente experimental deste projeto está situado em Portugal.

Portugal e os portugueses estão definitivamente na rota do crescente interesse global pelos efeitos das substâncias psicadélicas, um fenómeno que, à escala global, parece ter sido desencadeado pela publicação do livro How to Change Your Mind de Michael Pollan em 2018, traduzido em português com o título Como Mudar a Sua Mente (PRIME Books, 2020) e dirigido a todo o tipo de leitores. Hoje, o cidadão comum depara-se regularmente com notícias na comunicação social sobre estudos científicos que afirmam a promessa da nova medicina psicadélica; com celebridades que usaram psicadélicos e contam a sua história; com novas clínicas e hospitais que já usam psicadélicos; e com avanços legislativos nesta matéria, dos EUA até à Austrália (entre muitos outros tópicos).

É precisamente para o cidadão comum que este livro foi escrito. Mais especificamente para adultos (e talvez alguns adolescentes) curiosos e interessados no tema, mas ainda pouco ou mal informados sobre ele. Pessoas que, provavelmente, até há pouco tempo subscreviam a asserção genérica de que todas as drogas são perigosas para a saúde, provavelmente aditivas e, por isso, para serem mantidas à distância. Este pequeno ensaio pretende contrariar esta visão e oferecer uma perspetiva mais atual e positiva, embora factual e realista, sobre esta classe particular de drogas. Está escrito em linguagem não técnica e pretende-se que contenha o essencial, e não muito mais que o essencial, para todos os que entram de fresco no tema.

Até setembro de 2018, o autor deste livro era uma das pessoas descritas em cima. Alguém com um viés negativo relativamente às substâncias psicoativas ilícitas (vulgo, «as drogas»), sem história de consumo nem interesse, pessoal ou profissional, pelo tema. Alguém que detinha um escassíssimo grau de «cultura psicadélica». Suficiente será dizer que, sendo há décadas admirador da banda californiana The Doors, não conhecia a origem do nome da banda, o livro As Portas da Perceção [The Doors of Perception] de Aldous Huxley, onde este descreve as suas experiências psicadélicas com mescalina. Contudo, tinha a seu favor um longo interesse por psicologia e saúde mental, formação científica avançada e também um gosto particular por temas de larga abrangência social.

Tinha ainda uma característica que se revelou decisiva: era, desde há muitos anos, um adepto do estilo rigoroso e audaz, se não mesmo visionário, de Michael Pollan. Se este autor e jornalista de ciência norte-americano, com uma reconhecida obra publicada na área da nutrição e alimentação dirigida ao público em geral, se tinha interessado pelo tema dos psicadélicos — ao ponto de escrever um livro inteiro sobre o assunto — o tema mereceria certamente atenção. Uma ilação que se provou correta, muito além do expectável.

Por que se fala tanto de psicadélicos atualmente?

Na viragem do último século, a Ciência dos Psicadélicos ganhou um novo fôlego com a publicação de alguns estudos científicos decisivos, depois de décadas de silêncio nas revistas científicas (mais sobre isto será dito à frente). Sobretudo a partir de 2010, e de forma exponencial desde então, a comunidade científica, mas também a sociedade civil — através de novas organizações, projetos e eventos, peças jornalísticas e uma forte presença nas redes sociais — têm acompanhado, e ajudado a desenhar, aquilo que passou a chamar-se «Renascença Psicadélica» [Psychedelic Renassaince], por vezes também traduzido por «Renascimento Psicadélico». A publicação internacional do livro de Michael Pollan em 2018, adaptado e atualizado em 2022 numa série televisiva homónima, e a cobertura que o livro faz da «nova ciência» dos psicadélicos, com destaque para o seu potencial terapêutico e para as descobertas neurocientíficas (ou seja, como atuam os psicadélicos no cérebro), marcam uma transição definitiva de uma era marcada pelas políticas de «Guerra às Drogas» (psicadélicas incluídas) e o correspondente estigma e receio pelo público, para um período onde impera uma grande esperança relativamente ao potencial destas substâncias.

Figura 1 – Artigos científicos sobre psicadélicos listados na PubMed.

Nota: Pesquisa realizada a 3 de janeiro de 2024 com a palavra «psychedelics» ou «psilocybin» no título, e data de publicação entre 2000 e 2023.

Sobretudo a partir de 2018, foram publicadas várias centenas de artigos científicos sobre psicadélicos (figura 1). Na liderança do interesse mediático e, por conseguinte, do público, estão os resultados obtidos até hoje na área da saúde mental, um tema que capta ainda mais a atenção da sociedade desde a epidemia da COVID-19. Ensaios clínicos para o tratamento da depressão, ansiedade, perturbação de stress pós-traumático (PSPT), alcoolismo, tabagismo e consumo de opiáceos, bem como estudos mais preliminares que exploram o potencial dos psicadélicos para melhorar a perturbação obsessivo-compulsiva, a dor crónica e a dor de cabeça, o autismo em jovens, ou a anorexia nervosa têm revelado taxas de sucesso assinaláveis (no caso dos ensaios) ou resultados positivos e promissores, no caso dos estudos não-experimentais. Todavia, e apesar do entusiasmo com que têm sido acolhidos estes resultados, pode dizer-se que investigação com psicadélicos, sobretudo a investigação clínica, está ainda na sua infância.

A possibilidade de se descobrirem tratamentos mais eficazes do que os atuais para doenças como a depressão, ansiedade e adições não poderia ter passado despercebida se considerarmos o seu enorme impacto na saúde pública. Paralelamente, vários cientistas, num número crescente de centros de investigação na área das neurociências, vários dos quais exclusivamente dedicados ao estudo dos psicadélicos, têm avançado com hipóteses explicativas plausíveis para os efeitos biológicos e comportamentais observados nos ensaios clínicos. Se a isto adicionarmos programas de televisão dedicados ao tema (vários na Netflix como The Mind Explained ou Have a Good Trip); centenas de episódios em podcasts; pessoas que partilham publicamente as suas histórias de uso de psicadélicos (quase invariavelmente positivas); um contexto sociopolítico menos extremado em relação ao uso pessoal de drogas; a progressiva legalização médica da canábis por todo o mundo; a facilidade de comunicação fornecida pela Internet (p. ex. fóruns de utilizadores anónimos como o Erowid); e o aumento de utilizadores — perceberemos então por que tantas pessoas discutem este tópico nos últimos anos.

Em Portugal, a primeira reportagem de fundo a aparecer nos media sobre este tema terá sido o artigo «A Nova Vida das Drogas Psicadélicos», publicada no jornal Público em fevereiro de 2019. Desde então praticamente todos os órgãos de comunicação social têm tratado o tema com alguma regularidade. Em vários artigos da imprensa tem sido possível ler sobre a investigação clínica no nosso país, nomeadamente por parte da Fundação Champalimaud. Desde 2023, um dos temas mais tratados nos media tem sido o aparecimento de serviços hospitalares públicos e clínicas privadas que oferecem opções de tratamento da depressão e outras condições com o uso de terapias assistidas por ketamina (ou cetamina). A ketamina é a única substância com efeito psicadélico legalizada para uso médico em Portugal, tal como na maioria dospaíses com assento na ONU. Trata-se de um uso off-label, ou seja, utilizado para indicações médicas diferentes daquelas para as quais o medicamento foi aprovado, algo muito comum na medicina.

Com exceção de um trabalho pioneiro realizado em 1963 por Emílio Salgueiro com o uso de psilocibina, os estudos na Fundação Champalimaud (inseridos em consórcios internacionas) são, até hoje, osúnicos ensaios clínicos com psicadélicos em Portugal. Contudo, outros académicos e grupos de investigação têm trabalhado e publicado em diversas áreas sobre psicadélicos. São os casos de investigadores ligados à Associação Kosmicare (sobretudo na área da redução de risco), de estudos com origem na Universidade Católica do Porto (em ligação com a organização Catalã ICEERS, sobre os efeitos da ayahuasca), na Universidade de Coimbra (em neurociências e ayahuasca) e, mais recentemente, também na Universidade de Lisboa, com foco principal na saúde comportamental. Mais pontualmente, vários autores portugueses têm também escrito e publicado sobre o tema em revistas científicas internacionais.

Por que tantos (e também o autor) nunca haviam prestado atenção?

A resposta assenta sobretudo em dois aspetos relacionados entre si. Por um lado, tal situação deve-se ao facto de, tal como tantas outras substâncias psicoativas, os psicadélicos terem sido globalmente proibidos na segunda metade do século XX. Justifica-se ainda, por outro lado, pelo forte estigma que desde então se instalou, por todo o mundo, relativamente ao consumo de «drogas ilícitas»[1]. Com exceção de setores como a Justiça e as forças de segurança, as sociedades tendem a afastar do centro da sua atenção temas que carregam este duplo fardo, legal e moral. Afastamento esse que reforça e perpetua o respetivo estigma. Os psicadélicos foram ostracizados socialmente por um efeito de arrasto com outras substâncias mas também devido a fatores culturais, médico-científicos e sobretudo sociopolíticos. A proibição em particular teve várias consequências que se mostraram decisivas para uma fase de «obscurantismo psicadélico» que durou até ao início do século XXI.

Talvez a mais importante destas consequências tenha sido a crescente dificuldade, na prática uma impossibilidade de, a partir do início da década de 1970, se realizar investigação científica sobre estas substâncias. O esvaziamento total do financiamento público para este tema, a reclassificação dos psicadélicos para as classes de drogas mais restritivas, e a estigmatização que os cientistas da altura sentiram, a par de uma opinião pública cada vez mais receosa e desfavorável, revelaram-se eficazes para afastar o tema da ribalta. Importantes protagonistas culturais, incluindo artistas famosos, muitos dos quais faziam parte do movimento hippie, passaram também a esconder o seu uso de substâncias psicadélicas,quando antes este integrava o zeitgeist cultural por direito próprio.

Não obstante, muitos historiadores acreditam que o uso de psicadélicos foi um fator determinante para o rumo da sociedade norte-americana nos anos 1950 e 1960 do ponto de vista cultural, mas também político e até filosófico. Processos similares ocorriam na Europa, pela mesma altura ou pouco tempo depois, embora o seu impacto na cultura não tenha sido tão marcante como aconteceu nos EUA.

Finalmente, é necessário destacar as mudanças no campo da medicina, especialmente na psiquiatria, onde se verificava, na altura em que os psicadélicos apareceram como terapia, uma tendência progressiva na direção de valorizar abordagens farmacológicas em detrimento de terapias que envolviam uma maior participação do paciente, fundamentadas justamente na relação entre o paciente e o profissional de saúde. Isto contribuiu para reduzir o investimento em formas alternativas de tratamentos, como as que incorporavam o uso de psicadélicos.

Em suma, durante a década de 1970, as terapias com psicadélicos foram relegadas para o esquecimento por parte de especialistas, dos media e de potenciais utilizadores. Com exceção de uma resiliente rede informal de terapeutas a operar de forma underground, sobretudo nos EUA, e também de alguns investigadores que nunca desistiram do tema, esta situação só foi definitivamente revertida a partir da segunda década do século XXI. Nos dias de hoje, observa-se um crescente interesse por parte de vários setores da sociedade, começa a haver opções de especialização profissional e aparecem também associações científicas e profissionais, particularmente da área saúde mental — todos fatores decisivos na promoção de novas abordagens terapêuticas e no aumento da confiança do público na sua utilidade e segurança.

O que levou à proibição destas substâncias?

A versão mais popular para explicar a origem do curso de acontecimentos anteriormente descritos é a que coloca no seu epicentro os receios políticos e correspondentes decisões da administração Nixon. No final dos anos 1960 existia, como se sabe, uma crescente contestação relativamente ao mandato de Richard Nixon, em particular a oposição à guerra do Vietname por parte de grupos de estudantes e associações que se batiam também pelos direitos das mulheres e de várias minorias. Muitos destes movimentos contracultura estavam associados ao uso de psicadélicos, em particular o LSD, mas também a psilocibina (cogumelos mágicos) e a mescalina. Algo que era também prática comum, e partilhada abertamente, por parte de intelectuais, músicos, atores e outros agentes culturais.

Sabe-se hoje que a administração Nixon decidiu, por esta altura, promover legislação para ilegalizar os psicadélicos e a marijuana, classificados na categoria de Schedule 1, a categoria de drogas mais restritiva. Ainda que a investigação científica tenha continuado a ser legalmente possível, os obstáculos criados por esta classificação tornaram-na quase impraticável a partir desse momento. As autoridades nos EUA também financiaram e promoveram uma campanha difamatória sobre estas drogas, em grande parte como uma forma de contra-atacar e reduzir a força dos grupos contestatários. Não os podendo reprimir pelas suas ideias, a polícia e a justiça podiam agora prender e acusar pessoas e grupos específicos pela posse ou consumo de drogas (após a lei) ilícitas.

Paralelamente, os meios de comunicação social difundiram, anos a fio, histórias fictícias ou enviesadas sobre os supostos efeitos nefastos destas drogas, em particular o LSD, aparentemente com a conivência de alguns cientistas nas boas graças da administração Nixon e de outros órgãos de poder. A combinação entre a proibição, que limitava os canais de distribuição e aumentava os riscos da procura e do consumo, e a forte estigmatização social influenciaram decisivamente a mudança da opinião pública sobre o uso e potenciais benefícios das substâncias psicadélicas.

Uma análise mais completa deste período identifica fatores adicionais que terão também contribuído para a mudança verificada. Um deles, que precede a ilegalização dos psicadélicos, foi a crescente dificuldade, nos anos 1960, dos cientistas em realizar ensaios clínicos e produzir evidência com qualidadesuficiente para corresponder às novas exigências das autoridades regulatórias. Como hoje voltamos a verificar, as terapias com o uso de psicadélicos não são isentas de questões éticas e dificuldades metodológicas, algo que os cientistas e o próprio estado de desenvolvimento da ciência à época não estavam apetrechados para enfrentar. Outro fator que reduziu a popularidade dos psicadélicos mais usados altura, sobretudo o LSD, foi o aparecimento e difusão entre os utilizadores de substâncias psicoativas alternativas. A mais popular terá sido o MDMA (ou «ecstasy»), proibido nos EUA em 1985 e em muitos países pouco depois, situação que perdura até hoje.

O uso de psicadélicos começou no século XX?

Não — de todo. No que respeita ao consumo de substâncias com efeito psicadélico pela espécie humana, definiram-se até hoje três grandes períodos. O primeiro consiste em práticas ancestrais desenvolvidas e mantidas desde a Pré-História e Antiguidade, muitas delas mantidas durante a Idade Média. O segundo impulso coincide genericamente com o século XX, período em que foram identificadas e depoissintetizadas quase todas as moléculas que hoje conhecemos como psicadélicas. Esta foi a vaga em que tal consumo se popularizou e em que se assistiu ao início e também ao encerramento prematuro da ciência, medicina e terapias (modernas) com o uso de psicadélicos. Finalmente, chega a vaga contemporânea do século XXI (a «Renascença Psicadélica»), com maior impulso a partir de 2006, ano da realização de um Simpósio Internacional comemorativo dos 100 anos de Albert Hoffman e que reuniu a maioria dos especialistas mundiais em psicadélicos.

Entre historiadores e antropólogos existe um relativo consenso quanto à ideia de que a espécie humana usa substâncias que alteram a mente desde há vários milhares de anos. Este é um facto extraordinário, considerando que tais experiências sempre tiveram o potencial para serem perigosas, mesmo fatais, tratando-se tipicamente de compostos com alguma toxicidade. Tal como outras explorações humanas tão aventureiras (e perigosas) como as explorações marítimas, a exploração de picos montanhosos e do fundo dos mares, ou a exploração espacial, as «viagens» aos estados alternativos de consciência — nomeadamente através da exposição a drogas — parece ser algo que motiva e atrai o ser humano de forma incontornável[2]. Em parte, e simplificando bastante, isto ajuda a explicar porque políticas proibicionistas como a Lei Seca, proibindo o álcool no século XX, e a mais recente «Guerra às Drogas», não tiveram um sucesso sustentado.

Existem registos indicativos de práticas com substâncias psicoativas em cavernas e outros locais comvestígios históricos que remontam a aproximadamente 5 000 anos atrás. Estão igualmente descritos rituais regulares com bebidas (provavelmente) com efeito psicadélico na Grécia Antiga, nomeadamente através do rito conhecido como «Os Mistérios de Elêusis», que durou centenas de anos. Na verdade, há evidência de práticas cerimoniais com substâncias psicoativas em praticamente todas as civilizações de que há registo, incluindo as que foram objeto de colonização durante o final da Idade Média e do período da Expansão Marítima. Neste último caso, estão bem documentadas práticas com substâncias psicadélicas provenientes de fungos e plantas na América do Sul, encontradas (e combatidas) pelas Cruzadas Portuguesas e Espanholas. O mesmo se verificou na América do Norte, onde o uso dos catos Huachuma (ou San Pedro) e sobretudo o peiote, ambos contendo o psicadélico mescalina, possuem um longo historial de utilização entre os povos nativos.

A segunda (e decisiva) vaga dos psicadélicos teve o seu início precisamente com a descoberta da mescalina pelo americano Arthur Heffter, em 1898, a que se seguiram várias décadas de experimentação com esta substância por parte de investigadores e médicos. A mescalina foi posteriormente sintetizada, em 1919, sendo hoje reconhecida como o primeiro psicadélico da era moderna, o primeiro a ser estudado com métodos científicos. Foi ainda o primeiro psicadélico a ser produzido e comercializado, nos anos 1940, e assim o primeiro a chegar ao cidadão ocidental comum para uso privado. Curiosamente, devido às características da experiência em si (muito longa, podendo atingir as doze horas) e à crescente popularidade do LDS e de outros psicadélicos, a mescalina passou progressivamente para um plano secundário no uso popular e foi também preterida pela investigação científica. Atualmente, a investigação com este composto foi retomada, com diversos estudos em curso para várias condições de saúde mental, bem como estudos que comparam a ação da mescalina com a de outros psicadélicos.

A descoberta do LSD pelo químico suíço Albert Hoffman em 1938, sobretudo a primeira experiência intencional com LSD da história, realizada por ele e assistida por Susi Ramstein-Meier a 19 de abril de 1943, é talvez o marco mais importante na história moderna dos psicadélicos. É efetivamente um marco não só pela influência que o consumo generalizado de LSD viria a ter nas culturas norte-americana e europeia, mas também pelo facto de esta substância, produzida inicialmente pela empresa suíça Sandoz, ter sido distribuída gratuitamente, durante mais de uma década, a todos os investigadores e médicos que a quisessem estudar, em qualquer parte do mundo. Desde os anos 1950 e até cerca de 1970, centenas de estudos com o uso de LSD foram publicados, abrangendo milhares de participantes.

Essa investigação, com ênfase na psicoterapia e no tratamento da depressão, ansiedade e dependências (sobretudo de álcool[3]), incluiu não apenas o LSD, mas progressivamente também a psilocibina. Esta havia sido isolada dos cogumelos mágicos, em laboratório, também por Hoffman (1958), depois deste ter tido acesso a amostras desta espécie com origem no México e, mais tarde, cultivados nos EUA e na Europa. Apesar de vários antropólogos terem tido contacto com cogumelos da espécie psilocybe, na América do Sul e Central e desde a viragem do século XIX, foi a reportagem publicada por R. Gordon Watson em The LIFE Magazine em 1958, onde retratou as suas experiências psicadélicas no México com a curandeira Maria Sabina, que trouxe os «cogumelos mágicos» para o centro da cultura e ciência ocidentais.

No que concerne ao uso pela população no Ocidente, várias outras substâncias com efeito psicadélico foram surgindo durante a segunda metade do século XX. O químico Alexander («Sasha») Schulgin e a sua mulher Ann sintetizaram e testaram, com um grupo de amigos e de forma sistemática, dezenas de novos químicos, os mais famosos os da família «2C» (2C-B é o mais popular até hoje). Shulgin foi também responsável pela redescoberta e (re)síntese do MDMA, que havia sido isolado quimicamente em 1912 mas abandonado pouco depois. A ketamina foi sintetizada apenas em 1962, mais tarde aprovada em todo o mundo como um anestésico eficaz e seguro, e nos anos 1990 adotada pela cultura popular para uso recreativo devido às suas propriedades psicadélicas (em dose sub-anestésica). Do mesmo modo, algumas plantas tradicionais — como a planta da Iboga (que contém o composto psicadélico ibogaína) e várias plantas contendo DMT (outro psicadélico) — bem como o veneno do sapo conhecido como Bufo Alvarius (que contém o psicadélico 5-MeO-DMT) foram desde então introduzidos na comunidade de utilizadores de psicadélicos.

Finalmente, temos o caso particular da bebida «ayahuasca», com origem na América do Sul, tornada numa das mais populares formas de aceder a uma experiência psicadélica no Ocidente. A principal substância psicoativa deste preparado é o DMT, um psicadélico com efeitos no cérebro, em particular no sistema da serotonina, comparáveis aos da mescalina, psilocibina e LSD. Tal como alguns outros psicadélicos usados como remédio ou como sacramento por povos não-ocidentais, o uso de ayahuasca está associado na América do Sul a uma expressiva cultura, que inclui cânticos, símbolos e uma mundivisão particulares. Contudo, ao contrário de outros casos, como a mescalina ou a ibogaína, que hoje são usados no Ocidente na sua forma sintética, a ayahuasca continua a ser usada na sua forma original (uma bebida espessa) e quase exclusivamente em cerimónias que mantêm a maioria dos seus traços culturais originais. Isto acontece um pouco por todo o mundo, quer através de facilitadores sul-americanos em viagem pelos EUA e Europa, quer através de ocidentais que aprenderam as respetivas tradições na América do Sul e as recriam, com maior ou menor fidelidade, nos seus países de origem.


[1] Em linguagem popular, a expressão «consumir drogas» refere-se invariavelmente ao consumo de substâncias ilícitas embora, tecnicamente, isto não seja correto. Os medicamentos tradicionais, bem como substâncias psicoativas legais como o álcool e a nicotina do tabaco, também são drogas. O chá e o café, entre outros alimentos e bebidas, também contêm substâncias com psicoatividade (i.e. contêm «drogas» na sua composição). Como disse um orador numa sessão pública do projeto SafeJourney: «no fundo, somos todos uns “drogados”».

[2] E também muitos outros animais, incluindo primatas (álcool em frutas), renas (cogumelos psicoativos), golfinhos (peixe-balão) e gatos (a planta Nepeta Cataria ou catnip).

[3]  Bill Wilson, fundador dos Alcoólicos Anónimos, defendeu o uso de LSD para alguns pacientes com alcoolismo, embora isto nunca tenha sido efetivamente adotado pela organização.

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