Introdução à Ketamina
A ketamina (ou cetamina) é uma droga dissociativa sintetizada nos anos 60, inicialmente para uso veterinário e médico. Devido ao seu bom perfil de segurança, tornou-se amplamente utilizada em anestesia humana, sobretudo em situações de emergência e cirurgias. Recentemente, a sua utilização off-label tem ganho destaque em contextos clínicos, nomeadamente para o tratamento de depressão resistente, sendo administrada em doses sub-anestésicas, que induzem efeitos psicadélicos.
Paralelamente ao uso médico, a ketamina é também utilizada em contextos de uso pessoal (e.g., em casa ou outros contextos privados, festas, festivais, etc.) devido aos seus efeitos dissociativos e euforizantes. A sua acessibilidade no mercado paralelo tem impulsionado a sua utilização, que tem vindo a crescer globalmente, incluindo a Europa e Portugal. Este artigo aborda as características deste tipo de utilização, os riscos associados e identifica um conjunto de boas práticas com vista à sua minimização.
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Doses e Características da Experiência
Os efeitos da ketamina variam significativamente consoante a dose e e forma de administração. A ketamina é tipicamente utilizada de forma insuflada (intranasal) mas pode também ser ingerida oralmente. Na forma de uso por via nasal, o início dos efeitos é rápido (3-10 minutos), atingindo o pico entre os 30 e 45 minutos. O efeito de uma dose dura entre 60 e 120 minutos.
- Doses baixas (10-50 mg intranasal ou 30-60 mg oral): Efeito desinibidor, sensação de bem-estar e alterações leves da percepção.
- Doses moderadas (100-150 mg intranasal ou 150-250 mg oral): Dissociação percetiva, sensação de estar “fora do corpo”, efeitos psicadélicos mais marcados.
- Doses elevadas (200-300 mg intranasal ou 300-500 mg oral): Perda significativa de coordenação motora, incapacidade de movimento e fala, efeitos intensamente dissociativos e psicadélicos (incluindo, por vezes, o estado conhecido como “K-hole”).
- Doses anestésicas (>500 mg intranasal ou oral, ou administração intravenosa/intramuscular em ambiente hospitalar): Perda de consciência, incapacidade de resposta, risco de depressão respiratória e cardíaca.
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Boas Práticas na Utilização por Via Nasal
O uso de ketamina por via nasal, através de insuflação (ou seja, aspiração nasal ou inalação), é a forma de utilização mais comum em ambientes de uso pessoal. Esta prática pode causar irritação, inflamação e danos à mucosa nasal ao longo do tempo. Para minimizar estes riscos e proteger a saúde das narinas, recomendam-se seguir as seguintes práticas:
- Evitar o uso muito frequente – O uso repetido pode levar a inflamação crónica, dor e sangramento.
- Evitar doses muito elevadas numa mesma sessão – Quanto maior a dose, mais irritação ocorre na mucosa nasal.
- Não partilhar instrumentos (e.g., tubo) usados na inalação – Evita possíveis contaminações de bactérias, sangue ou detritos nasais entre utilizadores.
- Triturar bem a substância, até atingir um pó fino e uniforme – Grânulos grandes causam mais irritação.
- Testar a substância para evitar adulterantes nocivos ou desconhecidos – Estes podem causar efeitos inesperados na mucosa nasal.
- Alternar as narinas a cada inalação (ou evitar usar sempre a mesma narina numa sessão) – Evita sobrecarregar apenas uma narina.
- Lavar as narinas usadas com soro fisiológico, antes e depois do uso – Ajuda a remover resíduos e a reduzir a irritação.
- Hidratar com sprays nasais de solução salina ou água do mar – Mantém a mucosa nasal húmida e protegida.
- Não assoar o nariz com força após o uso – Pode irritar ainda mais a mucosa e agravar pequenas feridas.
- Evitar mexer na narina com os dedos – Pode causar infeções se houver pequenas feridas.
- Lavar os instrumentos utilizados, após cada sessão, e armazenar em local seco e fechado.
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Principais Riscos do Uso de Ketamina
- Adulteração: A ketamina vendida no mercado paralelo pode conter outras substâncias, como opióides sintéticos ou estimulantes, como a cocaína. O efeito conjunto destas substâncias pode ser inesperado e acarretar riscos adicionais face ao uso de ketamina de forma isolada.
- Experiências psicológicas negativas, causadas por dosagens elevadas, podendo levar a estados de profunda dissociação da realidade, do corpo e do contexto envolvente. Vulgarmente designado por “K-hole” (“buraco da ketamina”) este estado pode incluir sintomas como a distorção do tempo e do espaço, sensação de estar “preso”, confusão intensa, medo e pânico. Embora seja raro, é também possível que, após uma experiência intensa negativa, persistam sinais da designada “emergência psicadélica” (e.g., paranóia, ansiedade extrema, surto psicótico).
- Paralisia temporária e acidentes: Em doses elevadas, a ketamina pode impedir a capacidade de movimento, aumentando o risco de quedas, sufocação, afogamento e outros acidentes influenciados pela paralisia ou dificuldades na coordenação motora.
- Interações perigosas com outras substâncias: A combinação de ketamina com álcool, benzodiazepinas e outros depressores do sistema nervoso central, ou com outras substâncias menos conhecidas, pode ser perigosa e causar reacções inesperadas (incluindo depressão respiratória prolongada).
- Dependência e uso excessivo: O uso frequente pode levar à tolerância progressiva e ao início de comportamentos aditivos (mais sobre isto em baixo).
- Problemas de saúde: A exposição prolongada pode causar cistite induzida por ketamina, levando a dor, inflamação e, em casos graves, danos permanentes na bexiga.
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Recomendações Práticas para Aumentar a Segurança
- Testar a(s) substância(s) antes do consumo, com reagentes apropriados ou, preferencialmente, através do serviço de Drug Checking da Associação Kosmicare, em Lisboa, evitando assim consumir substâncias adulteradas.
- Cuidado na preparação das doses
- pesar as doses, sempre que possível;
- porque é expectável que muitos utilizadores não possam fazer pesagem em contextos de vida real, a quantificação visual deve ser feita por pessoas experientes (e será sempre uma aproximação);
- preparar as doses antecipadamente (i.e., preparar todas as doses antes do início da toma) e sempre num local com luz;
- garantir que as doses não podem ser acidentalmente alteradas (por exemplo, no caso de mistura intencional de substâncias, que podem ser visualmente parecidas entre si, definir previamente o local onde cada substância será preparada).
- Começar a toma com doses pequenas (menos de 50 mg) e aguardar pelo menos 30-45 minutos antes de re-dosear. Após 3-4 tomas, é importante ir aumentando o tempo de intervalo entre dosagens (para 1h ou mais), bem como garantir a supervisão por terceiros – quer no momento de preparação e administração, quer nos 5-10 minutos após a toma. Após várias tomas, cada dosagem sucessiva pode provocar uma súbita alteração da perceção e consciência, e uma redução marcada das capacidades físicas, entre outras reações inesperadas.
- Evitar o poli-uso (toma de ketamina com outras substâncias), especialmente com depressores como o álcool e benzodiazepinas; misturas com novas substâncias psicoativas sobre as quais o conhecimento é escasso em geral não são aconselhadas. No caso de se experimentar, a recomendação é usar doses baixas de ambas as substâncias e avaliar os efeitos antes de aumentar as doses.
- Ter sempre presente o tempo de atuação da ketamina no cérebro, que resulta em efeitos relativamente rápidos (entre 3 e 15 minutos) e que continuam a aumentar, sobretudo nos primeiros 20-30 minutos após a toma.
- Não consumir sozinho: Ter alguém de confiança por perto, com as qualidades mentais e físicas intactas, quer para o apoio à locomoção (e.g., trazer água, ida a casa de banho) quer na preparação e distribuição das doses durante a toma. Isto é especialmente importante nas primeiras tomas (salvaguardado assim reações fora do normal) e nas últimas dosagens, quando a quantidade de ketamina consumida e acumulada já é elevada.
- Interromper a toma no caso de agitação ou sintomas inesperados como suores frios, quebras de tensão, enjoo continuado ou confusão física ou mental inusitada.
- Ter cuidado com a mobilidade, evitando ambientes perigosos (por exemplo, piscinas ou cursos de água naturais como lagos, rios, mar) e escadas, janelas, ou outras superfícies onde uma queda possa resultar em ferimentos graves.
- Preparar antecipadamente e conhecer bem o espaço onde ocorrerá a toma, especialmente no caso do uso de uma quantidade elevada (de uma vez só, ou acumulada ao longo da sessão). É prudente ter disponível, para cada utilizador, um local seguro, preferencialmente no chão, cama ou sofá e o mais confortável possível (e.g., com almofadas, longe de móveis e outros objetos) e recomendável a deslocação rápida para esse local após a toma.
- Manter e rever antecipadamente mecanismos de contingência para resposta a acidentes e outras emergências. Estes mecanismos podem incluir pessoas no grupo com formação em suporte básico de vida e alguém com capacidade para conduzir veículos ou liderar comunicação com serviços de emergência.

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Risco de Comportamento Aditivo e Dependência
Para além dos riscos de sobredosagem e de situações inesperadas durante uma sessão de uso pessoal (abordados em cima), esta substância comporta também riscos a longo prazo. Ao contrário das substâncias psicadélicas mais comuns (e.g., os “psicadélicos clássicos” como o LSD, a psilocibina / cogumelos mágicos, ou a ayahuasca) a ketamina tem potencial para desencadear situações de dependência.
Embora se estime que a grande maioria dos utilizadores de ketamina em contextos de uso pessoal não desenvolva um comportamento aditivo ou dependência – diagnóstico também denominado como “perturbação no uso/consumo de substâncias” – em alguns casos isso acontece. Esta perturbação, de natureza comportamental, envolve tomas muito frequentes (e.g., diariamente ou várias vezes numa semana) associadas a obsessão e impulsividade na procura e posse da substância (craving), bem como sofrimento mental / emocional na sua ausência (síndrome de abstinência). O potencial aditivo da ketamina é inferior ao de substâncias como a cocaína ou heroína mas é superior ao de estimulantes como o MDMA, ou de psicadélicos como o LSD.
O risco de adição a esta substância está, em parte, associado ao fenómeno fisiológico de tolerância – uma redução progressiva da sensibilidade à substância e aos seus efeitos – o que conduz a tomas em quantidades cada vez maiores, padrão que faz aumentar substancialmente os riscos físicos conhecidos da toma excessiva (ou abusiva) da substância. Os danos graves na bexiga são talvez os mais preocupantes dado que a exposição prolongada deste órgão a ketamina (e aos seus metabolitos) provoca inflamação, destruição celular e substituição do tecido saudável por tecido cicatricial, o que compromete a função normal da bexiga. Estes efeitos podem ser irreversíveis.
É importante notar que, como acontece com outras substâncias psicoativas, o desenvolvimento de comportamentos aditivos e dependência resultam sempre de uma combinação de fatores, incluindo as características da substância, do utilizador e do seu contexto social. Pessoas que precisem de apoio em situação de dependência podem encontrar recursos adicionais nos websites do ICAD – Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências e da Associação Kosmicare. Alguns profissionais listados no Diretório SJ de Profissionais têm também experiência neste domínio (consultar as respetivas fichas biográficas).
Nota: O SafeJourney agradece a Maria Carmo Carvalho os comentários a uma versão anterior deste artigo.