O conceito de “curador interior” (inner healer em inglês) propõe que o ser humano possui uma capacidade intrínseca de autorregeneração psicológica, que pode ser despertada ou amplificada por substâncias psicadélicas como a psilocibina. Mas será este conceito um mito inspirado em modelos espirituais e escolas transpessoais ou poderá, de facto, representar um mecanismo com relevância terapêutica?
A ideia de regeneração e autoregulação interna tem raízes milenares, presente em tradições indígenas, nas práticas de meditação e no yoga. Na modernidade foi usado por escolas de psicologia com uma vertente transpessoal, como por exemplo na Psicologia Analítica de Carl Jung e no seu conceito de compensação e regulação entre “Si-Mesmo” e o “Eu”, ou em Stanislav Grof no conceito de “curador interno”. As escolas de terapia que colocam esta hipótese de trabalho são tipicamente menos diretivas na sua intervenção, suportando o cliente num continuo trabalho de descoberta do seu centro psíquico.
Um grupo internacional de investigadores, testou cientificamente este conceito, desenhando um estudo que incluiu 59 participantes com diagnóstico de depressão moderada a severa, divididos em dois grupos: um recebeu uma dose alta (25 mg) de psilocibina; o outro, uma dose placebo (1 mg). Após a sessão, foi-lhes apresentado uma pergunta específica para avaliar a perceção de cura interna (The inner healer item): “Senti que o meu corpo/mente/cérebro se estava a curar sozinho, automaticamente/naturalmente.” A escala vai de -2 (discordo totalmente) a +2 (concordo totalmente).
Os participantes que receberam a dose alta de psilocibina registaram pontuações mais elevadas no item “curador interior” do que o grupo placebo. Mais relevante ainda: estas pontuações previram melhorias nos sintomas depressivos duas semanas após a sessão, conforme avaliado pelo Inventário de Depressão de Beck.

Importa sublinhar que estas melhorias não se correlacionaram com a intensidade subjetiva dos efeitos da substância, nem com os níveis de sugestionabilidade ou expectativa prévia dos participantes. Isto sugere que o presumível efeito não se deve apenas a um “priming” psicológico ou ao ambiente terapêutico, mas pode estar ligado a uma mudança mais profunda nos processos neuropsicológicos do paciente.
Os investigadores também exploraram a relação entre o “curador interior” e outros fenómenos já bem documentados nas terapias assistidas por psicadélicos, como experiências místicas, experiências emocionais transformadoras e experiências desafiantes. Verificou-se alguma correlação com experiências de tipo místico, mas não com as outras duas categorias.
O “curador interior” poderá representar um construto parcialmente distinto, que merece uma investigação autónoma com metodologias complementares, como as qualitativas, no sentido de se distinguirem aspetos específicos deste fenómeno.
Implicações Clínicas
Para profissionais de saúde mental, estes resultados levantam questões fundamentais:
- Como integrar esta dimensão subjetiva de cura na prática clínica?
- Será que certos pacientes respondem melhor quando se facilita o acesso a esse sentido interno de regeneração?
- Devem os terapeutas considerar o “curador interior” como uma metáfora útil ou como uma experiência real que pode ser catalisada?
A ideia de que a mente possui mecanismos de autocura e autoregulação poderá reforçar a aliança terapêutica e fomentar a autoeficácia do paciente, se for abordada com cuidado e sem dogmatismos. Pode haver uma relação com o efeito placebo, fenómeno cada vez mais estudado com efeitos positivos mesmo quando os participantes sabem que estão a tomar um medicamento placebo.
É importante notar que o estudo usou apenas um único item para medir este fenómeno. Como tal, os autores defendem a necessidade de desenvolver escalas mais robustas e de natureza multidimensional, bem como a investigação de correlações neurobiológicas, como as alterações de plasticidade cerebral e de entropia funcional associadas a estados psicadélicos.
O conceito de “curador interior” ainda não está cientificamente consolidado, mas estes dados iniciais sugerem que poderá corresponder a um processo real, com impacto na melhoria clínica. Para os profissionais da saúde mental, especialmente aqueles que trabalham com terapia assistida por psicadélicos, este construto abre caminho a novas formas de compreender e facilitar o processo de cura, sendo as sessões de dosagem tipicamente experiências maioritariamente centradas na experiência subjetiva e interior do paciente.

Também se coloca a questão da influência do contexto, ou seja, de como o setting, a relação terapêutica e elementos como a música interagem com a experiência do curador interior. A ideia de que este curador não é um fenómeno descontextualizado foi explorada recentemente num artigo que propõe uma definição alternativa do conceito, integrando perspetivas do vitalismo crítico e do conhecimento indígena.
Nesta abordagem, o conceito é ampliado para incluir dimensões relacionais, ecológicas e mais-do-que-humanas, sublinhando que a saúde e a cura não se limitam ao indivíduo isolado, mas emergem da interconexão entre pessoas, lugares e o mundo vivo que nos rodeia. Os autores defendem que compreender o curador interno a partir desta perspetiva amplia as possibilidades terapêuticas, sobretudo no campo da psicoterapia assistida por psicadélicos, oferecendo uma visão mais holística, descolonizada e ecologicamente situada da cura, que reconhece tanto os processos internos como as relações externas que sustentam a saúde.
Nesta conceptualização expandida, os autores propõem o termo inteligência curadora inata (innate healing intelligence), entendida como a capacidade inata de cada indivíduo de curar ao envolver-se com a força vital da existência, específica ao lugar e intrínseca à multiplicidade de relações mais-do-que-humanas que constituem os nossos ‘eus’ alargados. Assim, a inteligência de cura não é apenas uma força interior abstrata, mas está enraizada em territórios, ecossistemas, comunidades e relações que expandem o próprio sentido do “eu”. Esta visão desafia a abordagem biomédica dominante, valorizando a reciprocidade, a vitalidade e a ligação com a natureza.
O artigo apresenta ainda recomendações práticas para aplicar esta compreensão alargada do curador interno. Defende que a cura deve ser potenciada através da atenção às dinâmicas relacionais e enraizadas no lugar, trabalhando explicitamente a ligação à natureza para expandir o potencial terapêutico. Propõe, igualmente, conceptualizar a cura a partir de uma perspetiva de curiosidade vital, em que o objetivo terapêutico é remover barreiras às necessidades vitais do indivíduo. Estas necessidades não se reduzem ao que garante a sobrevivência, mas incluem as condições que permitem usufruir plenamente da vida.
Os autores sublinham também a importância de valorizar o papel das metáforas na medicina, que podem atuar como ferramentas essenciais para compreender e comunicar o processo de cura, e sugerem expandir a noção de curador interno para além da psique humana, integrando as relações entre seres humanos e não humanos.

No essencial, o conceito de inteligência curadora inata propõe uma abordagem à cura mais coletiva, contextualizada e corporal, incentivando práticas terapêuticas mais integradas, éticas e conscientes do impacto que as ligações com a natureza e com comunidades humanas e não-humanas têm na saúde e no bem-estar.
Esta visão ganha forma metafórica através de uma passagem do livro Ceremony, de Leslie Marmon Silko, onde se descreve que “by the end of the ceremony, it is as if skin contains land and birds (…) the animals and ancestors move into the human body, into skin and blood. The land merges with us” (No final da cerimónia, é como se a pele contivesse a terra e os pássaros (…) os animais e os antepassados entram no corpo humano, na pele e no sangue. A terra funde-se connosco”).
O desafio agora será transformar este conceito milenar numa ferramenta clínica rigorosa, validada e útil, potenciando uma das ideias mais antigas da humanidade: a capacidade de curar a partir de dentro.