Testemunhos
#ayahuasca

Rui

43 anos – Profissional da saúde

O meu primeiro contacto com substâncias psicadélicas deu-se há cerca de 8 anos numa cerimónia privada de Ayahuasca realizada em casa de um amigo meu, que juntou cerca de 10 pessoas. Até essa altura não tinha tido qualquer experiência direta com este tipo de substâncias já que a palavra psicadélicos despertava em mim vários sinais de alarme associando-as a drogas perigosas, desgraças familiares, crimes ou à possibilidade de enlouquecer.

De certo modo eu sempre as receei porque carregava comigo uma memória antiga da altura da minha adolescência onde nos contaram a história de uma pessoa que vivia na praceta onde cresci, e que tinha tomado por engano uma dose exagerada dessas substâncias numa despedida de solteiro. Como resultado, tinha ficado “queimada do cérebro”, como se dizia na altura, passando os dias e a vida a deambular pela rua sem destino.

O facto desta cerimónia de Ayahuasca se ter realizado em casa de um amigo em quem confiava bastante foi fundamental para esquecer esses fantasmas antigos, dando-me a sensação ou intuição de que seria seguro fazer a experiência. Ainda para mais, a noção de que se tratava de uma substância natural e não sintética, usada cerimonialmente há milénios por indígenas da América do Sul para efeitos de cura, transformação espiritual e criação de vínculos entre a tribo e o meio envolvente da Natureza, aligeiraram os meus preconceitos e abriram-me a porta para seguir em frente.

A cerimónia foi uma viagem experiencial que teve de quase tudo. Mas foi maioritariamente deslumbrante com um ou outro momento mais difícil ou mesmo duro, mas que mesmo assim trouxe lições monumentais no quadro geral. O efeito da Ayahuasca em mim foi sedutor para a minha alma, como se tocasse nos pontos cruciais do meu ser, encantando-me com a sua beleza e profundidade e permitindo-me abrir cada vez mais as minhas resistências para os fenómenos que iam surgindo. Lembro-me de um clima de amor e aceitação entre todos como se fizéssemos parte do mesmo barco, um barco que parecia caminhar num rio cósmico de música e ícaros que me lembravam de uma sabedoria antiga e imutável. A música e as letras das canções eram ouvidas e sentidas por todas as moléculas do meu ser, como se elas soubessem reconhecer este som e tivessem saudades dele.

Recordo-me de ver pequenos grãos coloridos que davam forma aos objetos do mundo, como se representassem o mundo subatómico das coisas, que saltavam, vibravam e se constituíam à medida que as ondas de som percorriam o espaço. Despertou-me uma curiosidade séria pelo poder do som e lembro-me de ter tido visões de como a nossa tecnologia médica um dia se iria desenvolver de tal maneira que o som seria usado como raios laser, influenciando os tecidos do corpo humano com extrema precisão, ajudando-os a curar e transformar através de ressonâncias harmoniosas. Lembro-me de ter tido a clara revelação de como o som tem e influencia efetivamente as estruturas e os espaços.

Outro aspeto curioso que ocorreu desde que a música da cerimónia começou até ao seu fim, foi o do meu corpo ganhar uma outra vida, uma intenção, liberdade e direção muito próprias, onde eu apenas poderia tentar segui-las ou tentar resistir-lhes, mas no fundo sem nunca conseguir impedir que surgissem. Como quando o teu corpo te diz que tem fome ou sono. E durante toda a cerimónia surgiu-me esta vontade de acompanhar em sintonia o som do tambor com os batimentos da minha mão direita no meu peito. Apercebi-me de que havia aqui uma mensagem de trazer a minha atenção e presença mais para o coração, como se ele fosse um órgão perceptivo tão ou mais importante que o meu cérebro e os meus sentidos.

A dada altura a viagem ficou bem mais difícil, pois comecei a sentir um dos meus maiores receios a ficar mais intenso e a vir à tona. Lembro-me da imagem que acompanhou esse processo em que eu era um pequeno pássaro que queria cantar, mas estava perante dois gigantes de pedra que eram do tamanho de montanhas e que me diziam que não me era permitido cantar, que não merecia, não tinha essa qualidade, que jamais tinha esse direito. Foi tão doloroso emocionalmente que me contorci no chão de azulejo em posição fetal, embrenhado num medo e numa sensação que eram bem piores do que me ser negada a existência, pois o que me estava a ser negado era a minha liberdade de expressão, de cantar a canção que trazia em mim, de estar a ser silenciado e de não conseguir lutar ou desemaranhar-me disso.

Após alguns minutos assim, que mais pareciam uma eternidade vivida num poço escuro e sem fundo, aparece-me a imagem de um velho índio das Amazónias, vestido com umas folhas e lianas, deitado de lado e a olhar fixamente para mim, como se estivesse a olhar-me para além dos meus olhos. E de repente perguntou-me – “O que é que tu estás a fazer a ti próprio..?”. Bem, a partir desse momento tudo mudou, percebi que eu é que estava a criar aquela realidade e que tinha de facto um papel nisso, acima de tudo que me podia tirar dali e encontrar outra maneira de responder às coisas. Percebi e verifiquei mais tarde noutras experiências que tive com a Ayahuasca, como esta substância pode-te mostrar numa mão os teus medos e bloqueios mais subconscientes e na outra, oferecer-te uma maneira de os poderes transformar e encarar.

Como isto me mudou a vida? Lembro-me que a partir desse dia ganhei um amor e uma necessidade imensa de caminhar na natureza, algo que pratico regularmente desde então, é como ir à missa para mim. Fiquei mais consciente do meu medo mais nuclear e de ter recursos para o ir ultrapassando, para ir cultivando outras respostas no dia a dia. Ainda não o ultrapassei totalmente, mas não me sinto tão desamparado quando ele surge.

Saber que há liberdade em mim e sentido de agência mesmo perante o maior dos terrores traz-me esperança e força. Comecei a tentar cantar mais, aprendi a dançar e mexer o corpo depois de este ter estado parado muito tempo e por fim, comecei a tocar um instrumento musical. A escutar mais aquilo que sinto no coração em vez de ficar enredado de elaborações mentais e de toda a cacofonia e ruído que a mente por vezes traz. Por fim, ficou bem cimentado e enraizado em mim a experiência concreta de que existe toda uma sabedoria dentro de nós que passa completamente ao lado da escola, da família ou da cultura. E que é uma pena as pessoas não terem a oportunidade de irem ao encontro disso nesta existência.

Nota: Alguns nomes nos testemunhos foram alterados para assegurar o anonimato.