NOTA: O texto deste artigo faz parte do conteúdo complementar do livro “Psicadélicos: Em Português”. Algumas passagens complementares à versão impressa do livro serão disponibilizadas aqui, no website SafeJourney, ao longo dos próximos meses.
O que acontece no cérebro e na mente em psicadélicos?
Uma característica marcante da toma de um psicadélico é o tipo de efeitos que causa no cérebro e na mente. De forma sucinta, podemos dizer que os psicadélicos são singulares entre as substâncias psicoativas por causarem uma particular sequência de eventos no cérebro que se caracterizam por uma disrupção marcante no seu modo de funcionamento normal. Isto tem como consequência um conjunto de alterações notáveis na perceção do corpo e dos sentidos, na cognição e/ou no estado emocional – a chamada “viagem” psicadélica [1] (mais detalhes no livro).
São vários os processos que medeiam a chegada de um psicadélico como o LSD aos respetivos recetores nos neurónios, e que culminam na experiência subjetiva pelo utilizador. A sua complexidade afasta a possibilidade de uma explicação detalhada nestas páginas, mas os próximos parágrafos salientam alguns aspetos que podem ser mais interessantes para o leitor comum.
Num cérebro no estado psicadélico, os mecanismos de ação mais importantes envolvem os sistemas da serotonina, dopamina e glutamato. Estes sistemas influenciam inúmeros aspetos do nosso funcionamento, desde a regulação do humor, sono e apetite, até outros mais complexos relacionados com a adaptação às mudanças no meio, a resposta hedónica (prazer) e a motivação para a ação. Sabemos também que as zonas mais recentes e evoluídas do cérebro são as mais afetadas durante uma experiência psicadélica, o que justifica as alterações na consciência (a capacidade humana mais distintiva) durante a experiência. Isto explica também a disrupção, temporária, em funções centrais como o raciocínio lógico, a tomada de decisão refletida, a capacidade de perspetivar o futuro, a memória e a linguagem, entre outras.
O cérebro como a mente nunca ficam indiferentes à toma de uma dose suficiente de um psicadélico – é sempre uma experiência em que fica claro o salto, mais ou menos profundo, da realidade habitual para uma outra perceção da realidade.

Sabe-se que a atividade e a interconetividade de diversas redes neuronais do cérebro ficam bastante alteradas no estado psicadélico, causando um relativo “caos” (ou entropia) cerebral, com inúmeras implicações – não só na experiência sentida como em diversas adaptações funcionais e até estruturais no cérebro durante e após a experiência. Uma das mais discutidas é a diminuição da atividade da ‘rede modo padrão’ (default mode network), envolvida na consciência de si próprio e por vezes denominada como a sede funcional do Ego ou Eu. Outra alteração diz respeito a alterações nos fluxos de informação entre zonas mais profundas e mais superficiais do cérebro que resultam num relaxamento de certos padrões de pensamento que criámos por aprendizagem ao longo da vida e que podem ser mais ou menos rígidos e automáticos.
Estas e outras alterações criam as condições ideais para tornar mais fácil não só a compreensão da origem destes padrões (e.g. sob a forma de um insight), como a sua possível mudança. Isto acontece não só durante a experiência como nas horas e dias seguintes, durante a sua integração (mais sobre este processo no livro).
Dois dos aspetos mais interessantes do estado pós-psicadélico são o aumento marcado da neuroplasticidade (possibilidade de alterações estruturais e funcionais no cérebro), e a abertura de períodos críticos de aprendizagem, incluindo a aprendizagem social. Ambos os processos são característicos do cérebro de uma criança, mas tipicamente não acontecem em adultos. E ambos têm implicações importantes nos efeitos dos psicadélicos no funcionamento do nosso cérebro, abrindo oportunidades únicas para uma nova perspetiva sobre nós próprios, sobre a nossa experiência de vida, e sobre as possibilidades que ela encerra, nomeadamente a possibilidade de alterar padrões afetivos e de pensamento (e.g. crenças) e também comportamentos habitais interiorizados e tidos como “imutáveis”.

Uma alteração psicológica que a investigação tem verificado como associada aos efeitos dos psicadélicos é uma maior abertura à experiência – permitindo à pessoa encarar e participar em novas situações de vida, incluindo a tentativa de novos padrões relacionais e afetivos, não só face a outras pessoas como também com o meio-ambiente (por exemplo, maior facilidade de imersão na Natureza). É também frequente passar a ter uma maior capacidade de autoaceitação, sem juízos de valor, bem como uma maior ligação ou “conexão” afetiva ao outro, até com o próprio planeta.
Outros efeitos incluem adquirir uma perspetiva diferente ou mais abrangente sobre a experiência da vida e o que ela pode encerrar (exemplos são uma mais fácil expressão de vocações criativas, ou uma vivência mais aberta e exploratória da sexualidade); ver aumentada a flexibilidade mental/cognitiva – considerada por muitos psicólogos como um dos melhores preditores da saúde mental; uma renovada ligação ao próprio corpo, ou maior corporalidade, em que as experiências quotidianas (e também as mais especiais ou particulares) passam a ser vividas mais facilmente de forma incorporada (ou “encorporada”, diretamente do inglês embodied), integrando mais facilmente mente e corpo em cada vivência; e uma maior capacidade da pessoa de sentir a viver no momento presente, aquilo que se designa por mindfulness ou atenção plena.

Por fim, uma área de exploração mais recente, mas que se considera de importância capital na compreensão dos efeitos dos psicadélicos no cérebro e na mente. A investigadora Gül Dölan tem sido uma das impulsionadoras destas investigações e tem descrito de detalhe, em publicações e intervenções públicas, como os psicadélicos têm a capacidade de reabrir ‘períodos críticos de aprendizagem’ relativos à recompensa social. Trata-se de uma fase na qual o cérebro é especialmente suscetível a influências externas, facilitando a aprendizagem e a modificação comportamental. Dölan sugere que a duração da experiência psicadélica é diretamente proporcional à duração do período de aprendizagem reaberto, que pode variar de dois dias a quatro semanas com uma única dose.
Os psicadélicos podem assim ser uma espécie de chave-mestra que desbloqueia a aprendizagem, o que parece ter implicações extraordinárias não só para a mudança comportamental, mas também para futuras terapias para diversas doenças mentais caracterizadas pela imutabilidade e rigidez, incluindo doenças neurodegenerativas.
[1] É de notar que não se usa o termo “viagem” para qualquer outra classe de substâncias psicoativas.