Cultura

Capitalismo, Medicalização e Mainstreaming dos Psicadélicos: Que Futuro?

O primeiro de dois vídeos recentes, objeto deste artigo, é um breve documentário liderado por Alexander Beiner, que identifica e discute com vários especialistas nesta área os riscos e oportunidades que podem ser perdidas pela excessiva monopolização (ou adoção exclusiva de um modelo capitalista) na disseminação social dos psicadélicos e terapias associadas. O que significa e que consequências comporta o rápido desenvolvimento do “capitalismo psicadélico” – com mais de 250 empresas atualmente em operação – para a cultura, ciência e medicina psicadélicas? 

Participam Rosalind Watts (coordenadora do estudo com psilocibina para a depressão do Imperial College of London), Erik Davis (autor de Techgnosis and High Weirdness), Jamie Wheal (autor de Stealing Fire e Recapturing the Rapture), Kat Conour do Auryn Project, Bill Linton (CEO do Usona Institute) e o xamã Shipibo, Jose Lopez Sanchez, entre outros.  

Várias das questões levantadas no documentário anterior são aprofundadas numa fascinante e detalhada conversa entre Beiner e Lars Wilde, diretor e fundador da Compass Pathways, tida por muitos com a maior representante do lado negro do “capitalismo psicadélico”, sessão organizada e moderada pela Sociedade Psicadélica de Oxford. Em cerca de 90 minutos, os participantes trocam opinões, experiências e partilham a sua visão sobre o papel da Compass no ‘renascimento psicadélico’ e, mais em geral, as possibilidades e desafios para aumentar a acessibilidade a estas experiências / terapias, de forma segura, eficaz e equitativa.

O debate é revelador da complexidade das perguntas em causa e da fase absolutamente pioneira e exploratória em que o mundo e as sociedades se encontram fase ao processo de transportar e traduzir tradições milenares com psicadélicos para muitos milhões de pessoas, na modernidade. Transparece em ambos os intervenientes a ideia de que o que sabemos hoje sobre o “potencial psicadélicos” sofre na comparação com o muito que ainda é desconhecido – e tem de ser investigado, discutido, testado, avaliado e implementado. Lidar com esta incerteza e aceitar os passos necessários neste processo, num mundo que necessita de respostas urgentes e com incentivos para o crescimento, para a competição, para o individualismo, e para soluções “prontas a comprar e vestir” (mas apenas por quem pode), parece ser um dos maiores desafios.

“Trabalhar com o sistema” atual da forma mais rápida possível e visando especificamente (e explicitamente) os que sofrem já hoje de problemas de saúde mental; ou questionar a sociedade atual e as causas mais estruturais da enorme prevalência de sofrimento individual (e ambiental), procurando respostas de forma multidisciplinar, aberta e focada no trabalho “pequeno” e lento de centenas de “comunidades polinizadoras”. Garantir os benefícios da regulação e supervisão das práticas terapêuticas – como a maior segurança e previsibilidade da oferta ou a qualidade das substâncias envolvidas – e ao mesmo tempo assegurar que não existe um monopólio comercial dessas práticas e uma visão monolítica de como as aplicar. Escolha uma ou várias “visões do mundo” e adoptar um ou vários mapas ontológicos (e.g. indígenas/ancestrais, espirituais/religiosos, psicológicos) para enquadrar e interpretar as experiências psicadélicas… ou preferir não escolher nenhuma, em ambos os casos.

Estas são apenas algumas das ideias em constraste e das incertezas patentes no panorama psicadélico atual, e bem presentes nesta rara (em parte, porque Wilde e a Compass raramente as discutem em público) e imperdível conversa-debate. A interrogação final, colocada por Beiner na sua última intervenção – e que suscitou a total concordância de Wilde – é reveladora e representa de forma perfeita a elevada qualidade deste debate e as incertezas que ainda é necessário aceitar: 

A minha esperança para o renascimento psicadélico, para além da, e incluindo, a medicalização, é que a promessa dos psicadélicos e a forma como eles mudam como nos vemos a nós próprios e como vemos o mundo, se possa disseminar pela cultura… (…) Não tenho a certeza que a cultura atual seja merecedora que estejamos ‘bem’ nela, mas os psicadélicos oferecem-nos a criatividade, a visão, a energia, a atitude rebelde e a magia para descortinarmos… quem somos hoje (em sociedade), para onde caminhamos, porque estamos tão doentes… e é isso que eu quero que os psicadélicos inspirem, aceitando a a complexidade e multiplicidade no processo. É essa a minha esperança”.  E a do projeto SafeJourney também. 

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