Medicina

Abre em Portugal a Primeira Clínica de Ketamina

“Incrível”, “lindíssimo”, “fascinante”. Estas são as palavras usadas por João Costa Ribeiro, médico psiquiatra com 14 anos de experiência clínica e doutorado em Ciências Cognitivas pela Universidade de Lisboa, para descrever como tem sido o processo de acompanhar as experiências com ketamina, profundamente transformadoras da saúde mental, em pacientes com depressão. Em conjunto com José Ramos – também psiquiatra – e Adriana Santos, terapeuta ocupacional, o médico fundou a Liminal Minds, que iniciou atividade em Janeiro deste ano, na Clínica São João de Deus, em Lisboa, depois de um ano a implementar este tratamento, inovador em Portugal, no Hospital Beatriz Ângelo (HBA), em Loures

Com formação certificada em Ketamine-Assisted Psychotherapy pelo Polaris Insight Center (EUA) e membro da MIND – European Foundation for Psychedelic Science, João Costa Ribeiro esclarece que esta substância que, em doses bastante mais altas, é um anestésico dissociativo – usado nas chamadas ‘anestesias gerais’ – também pode ser classificada como um “psicadélico atípico”- sendo que tem aprovação para uso off-label[fora da indicação terapêutica aprovada originalmente pela entidade reguladora, ou seja, para uma doença diferente, com uma dose ou forma de administração diferente ou para grupo populacional diferente] em depressões resistentes às terapêuticas mais convencionais. 

Cerca de uma em cada quatro pessoas vai ter uma depressão ao longo da vida. Para muitas pessoas o tratamento com antidepressivos é eficaz, mas alguns ficam do lado menos simpático desta percentagem: pelo menos um terço das depressões é refractária à medicação, o que significa que após tratamento com duas classes diferentes de antidepressivos, durante mais de seis semanas e em doses terapêuticas, não apresenta melhoria. Para estes pacientes, com quadros arrastados de ineficácia à terapêutica antidepressiva convencional, a melhor opção até aqui era a eletroconvulsoterapia. Agora, a terapia assistida por ketamina passa a ser também uma opção. 

A substância psicoativa tem três efeitos potencialmente benéficos, refere o co-fundador da Liminal Minds: desde logo, uma ação farmacológica antidepressiva, relacionada com o efeito sobre a função cerebral, por via da sua atuação no glutamato, um aminoácido que funciona como neurotransmissor excitatório. 

Depois, há um efeito mais subjetivo, relacionado com o estado transformador de consciência. “O efeito psicológico agudo”, explica João Ribeiro, “que é virtualmente sobreponível aos psicadélicos clássicos, exceção feita à duração – que é de apenas uma hora na formulação que usamos.” Esta viagem psicadélica propriamente dita é, nas doses baixas usadas – de cerca de 0,5 miligramas por quilo – “tipicamente pouco disruptiva do ego, levando a experiências que, apesar de poderosas, não saem tanto do controlo da pessoa”. 

O efeito terapêutico desta experiência subjectiva está amplamente descrito: do ponto de vista psicológico ela pode levar a uma modificação da perspetiva sobre o mundo, sobre os outros ou sobre si próprio. Isso é especialmente importante na depressão: alguns dos seus principais sintomas – como a anedonia, a desesperança ou a sensação de vazio – são profundamente subjetivos. Isso quer dizer que quando alguém deprimido tem uma experiência subjetiva que o leva a sentir-se melhor e mais flexível, isso pode ter um impacto profundo. 

Por fim, a ketamina tem um efeito positivo sobre a neuroplasticidade cerebral. “E isto abre uma janela de oportunidade para recriar mecanismos neuronais e psicológicos, flexibilizando-os e levando também a uma possibilidade de mudança comportamental, cognitiva e emocional nos dias após a administração.” O pico deste feito acontece cerca de dois dias após a administração, pelo que a sessão de integração que faz parte do tratamento, por norma, coincide com esta janela de tempo.

Imagem do website da Liminal Minds

A Liminal Minds usa um protocolo um pouco mais flexível do que aquele que está implementando no HBA. Desde logo, do ponto de vista de indicações terapêuticas, que incluem também outras condições além da depressão, como a ansiedade generalizada, a perturbação obsessivo-compulsiva, perturbação de stress pós-traumático, fobia social e perturbação por uso de álcool.  

O tratamento envolve, em primeiro lugar, uma consulta de psiquiatria, de avaliação médica, para ver se estão reunidos os critérios clínicos para o tratamento. Seguem-se algumas sessões de preparação, nas quais o processo terapêutico é iniciado, são estabelecidos objetivos, criada uma aliança terapêutica e preparadas as experiências que se seguirão. Nas sessões de dosagens (entre 4 e 12 sessões) é administrada a ketamina através de uma perfusão intravenosa de 40 minutos, sob supervisão médica, e com a presença de um terapeuta. 

A primeira sessão de dosagem é feita habitualmente na modalidade psicolítica: é dada uma dose baixa, que pode ser ajustada durante a sessão, e o paciente não está imerso na experiência psicadélica – com venda nos olhos e a ouvir música com auscultadores – mas antes em relação com o terapeuta, para se ambientar, ver como reage e diluir as ansiedades e medos que possam, naturalmente, existir. “Houve um paciente nosso que, depois dessa explicação, usou uma imagem que faz muito sentido [para explicar a modalidade psicolítica]: é como ir tomar um banho no mar, mas só com a água pela cintura, em vez de mergulhar logo em água profundas e ficar sem pé”, remata o psiquiatra.

Por fim, depois de cada sessão de administração de ketamina, dentro da janela de tempo dos dois dias preconizados, é feita uma sessão de integração, que facilita a transposição da experiência psicadélica para mudanças positivas e duradouras na vida. Porque é isso que é, na essência, a psicoterapia: um processo de mudança, seja ela comportamental, cognitiva e/ou emocional. “O psicadélico é um ingrediente central, mas é apenas um dos ingredientes, não é a totalidade da intervenção. A vertente da terapia também é central”, resume João Ribeiro.

Neste aspecto, ainda falta investigação na área que clarifique como interagem os psicadélicos com os diferentes modelos psicoterapêuticos. Na Liminal Minds privilegiam a Terapia Centrada na Pessoa – abordagem criada por Carl Rogers – nas sessões de dosagem; e a Terapia da Aceitação e Compromisso (ACT) – uma das terapias de abordagem cognitivo-comportamental de terceira geração – nas sessões de integração. 

Quanto a resultados, há que gerir expetativas, mas são animadores. “Nenhuma terapia funciona de forma linear e não queremos prometer coisas que não são realistas, como que todas as pessoas vão melhorar instantaneamente ou que resulta sempre. Mas os estudos mais recentes apontam para entre metade e dois terços de taxa de resposta ao tratamento entre pacientes com depressão refractária”, conta João Costa Ribeiro. É um resultado muito bom, sobretudo considerando que nos pacientes com depressão refratária, a eficácia de novos medicamentos antidepressivos não chega aos 30%, e que se aproxima da taxa de cerca de 60% de resposta da eletroconvulsoterapia, uma opção segura e com provas dadas, mas bastante mais invasiva. 

Segundo o website da Liminal Minds, os custos do tratamento incluem consultas de avaliação pré-tratamento (75€), sessões de preparação (100€), sessões de dosagem com o medicamento (250€) e sessões de integração (100€). O número de sessões de dosagem e integração posterior é variável e definido individualmente. 

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