Opinião

Psicologia Analítica: Um Mapa de Viagem para a Experiência Psicadélica?

Sobre o autor: Pedro Mendes, 44 anos, MSc em Psicologia, Psicoterapias e Aconselhamento (ULHT, Lisboa), MA em Estudos Junguianos e Pós-Junguianos (University of Essex, Colchester, UK), Psicoterapeuta Analítico e Psicanalista Junguiano (C. G. Jung Institut, Zürich, Suíça). É formador em Psicologia Analítica e trabalha com adultos em psicoterapia, psicanálise e processos de desenvolvimento pessoal. Vive na Suíça. Mais informações em www.pedro-mendes.com

Quando planeamos uma viagem, tipicamente procuramos informação acerca do espaço que queremos visitar. Alguém antes de nós já lá esteve e criou um mapa que agora serve de referência aos viajantes que se seguem. Assim como fomos aprendendo sobre o mundo que nos rodeia e criando mapas e descrições do espaço físico onde vivemos e dos seres que o habitam, fomos igualmente explorando e cartografando o mundo interior. Mulheres e homens foram, ao longo da história e em diversos contextos culturais, percebendo paisagens interiores que partilharam na linguagem da sua área de saber e cultura. Carl Gustav Jung (1875-1961), psiquiatra suíço e fundador da Psicologia Analítica, foi um desses exploradores e cartógrafos do mundo interior.

Neste texto procuro apresentar, de forma muito sucinta (e por isso necessariamente redutora), o modelo de compreensão e trabalho com a Psique – isto é, o conjunto dos processos psíquicos, conscientes e inconscientes- desenvolvido originalmente por Jung e continuado pelos seus sucessores. Espero mostrar que a Psicologia Analítica, com os seus princípios teóricos, métodos e técnicas, é uma abordagem particularmente útil para a preparação, acompanhamento e integração do material emergente de experiências em estados não ordinários de consciência, nomeadamente com o recurso a substâncias psicadélicas. 

Desde muito cedo, Carl Jung teve a consciência clara de viver entre dois mundos: o mundo exterior com as tarefas e as expectativas próprias do seu tempo histórico e social, e um mundo interior, antigo, repleto de imagens e fantasias que o retiravam do aqui e agora, mas que o fascinavam e seduziam. Procurando encontrar respostas para as perguntas que estes dois mundos lhe traziam, interessou-se por história, arqueologia, filosofia, literatura, arte, religião, o oculto e ciência. A sua proposta de dinâmica psicológica e mapa do mundo interior que hoje temos disponível na Psicologia Analítica nas suas vertentes teórica e clínica, reflete esta consciência de que para tentarmos perceber a totalidade e complexidade do ser humano, precisamos de linguagens que falem do fora e do dentro. Jung foi um verdadeiro ‘psiconauta’, compondo e corrigindo a sua proposta de modelo psíquico de acordo com a sua experiência pessoal de relação com as paisagens e personagens que foi encontrando nas suas viagens interiores.

Jung, “Livro Vermelho”, 2009

Sendo um dos pioneiros da psicologia profunda (escolas de psicologia que estudam e reconhecem a existência do inconsciente e da sua influência na personalidade e vida consciente), percebeu que somos maioritariamente influenciados por aspetos que nos são desconhecidos, que foram esquecidos, ou precisaram de ser ignorados, aquilo a que a filosofia foi chamando de inconsciente e que Jung chamou de sombra. Ao contrário de Freud, Jung não percebeu o inconsciente apenas como um depósito daquilo que foi esquecido ou reprimido, mas sim como uma fonte de criatividade e potencial, a matriz de onde a vida consciente emerge. Ao mergulhar no inconsciente, na sombra, percebeu que a sua linguagem são as imagens e os símbolos, tentativas de comunicar emoções e atitudes que procuram expressão; percebeu que a Psique tem esta capacidade inata de simbolizar e de se expressar por imagens, numa forma nem sempre inteligível pelo ego e pela sua linguagem das palavras e das sensações. Muitas das nossas imagens interiores estão relacionadas com o contexto em que nascemos, as pessoas com quem nos relacionámos e que potenciaram o nosso desenvolvimento ou nos magoaram profundamente, as experiências positivas e negativas que fomos vivendo e aqueles com quem hoje partilhamos as nossas vidas. A estas imagens e emoções associadas, Jung chamou de inconsciente pessoal

Percebeu também que somos influenciados por muito mais do que apenas o contexto social, familiar e cultural. Que há imagens que nos visitam, mas que não estão relacionadas com a nossa história pessoal. Percebeu que não somos uma folha em branco que começa a ser escrita quando nascemos, mas que somos também a síntese da história dos nossos antepassados, da história da humanidade, que somos depositários de imagens e símbolos universais, os arquétipos, partilhados por todos e presentes nas diversas mitologias, religiões, tradições espirituais e folclore, formas simbólicas de expressar padrões típicos que partilhamos enquanto espécie. A este nível de realidade psíquica, Jung chamou de inconsciente coletivo.

Percebeu que somos corpo e alma (não no sentido religioso do termo, mas no sentido psicológico da personificação e expressão dos conteúdos do inconsciente nos seus níveis pessoal e coletivo), duas faces da mesma moeda e que os modelos dualistas de pensar o ser humano, não fazem justiça à nossa essência. Percebeu que em nós existem dois centros em permanente diálogo e tensão, cocriando o processo natural de desenvolvimento a que chamou de individuaçãoa descoberta da nossa individualidade, verdade e vocação e, simultaneamente, a aproximação sucessiva do nosso potencial e totalidade:

– o Ego, aquilo a que eu chamo ‘eu’, um complexo de identificações, memórias, preferências, adaptações ao mundo exterior e centro da consciência (expressão parcial e enviesada da nossa personalidade total); 

– e o Self, detentor de uma consciência alargada e total de quem somos, o nosso potencial enquanto indivíduos e espécie nas dimensões pessoais e transpessoais, sempre presente, mas esquecido e desejando revelar-se. 

Por isso a psicologia analítica é uma psicologia transpessoal que, não negando a importância central da consciência e das dimensões pessoais do eu, sabe que o verdadeiro sentido da vida é tomar consciência de quem realmente somos e que para isso precisamos de ir para além do Ego, num diálogo com o Self. Neste diálogo podemos recuperar tanta vida não vivida, um tesouro guardado na nossa sombra que deseja ser encontrado. Qualidades, características e atitudes que não encontraram expressão nas nossas vidas por necessidade de adaptação aos contextos que fomos encontrando, aguardam na sombra para serem experimentadas e integradas, expandindo o nosso sentido de ‘eu’, questionando crenças que já nos servem em relação a nós próprios e ao mundo e aumentando as possibilidades de escolha e ação. 

Jung, “We fear and we hope”, 1923

Quando a vida se resume ao mundo exterior e às suas exigências, adoecemos no corpo e na alma, pois desligamo-nos de uma parte de nós que espera ser acolhida, honrada e integrada. Sintomas físicos e psicopatológicos são vistos na Psicologia Analítica como expressões simbólicas e com significado deste desequilíbrio entre consciente e inconsciente. A Psique (a totalidade consciente e inconsciente) procura naturalmente o equilíbrio e as suas manifestações são tentativas de cura, mesmo que mascaradas de sintomas ou imagens que nos fazem sofrer e que por isso queremos eliminar. 

Apesar da Psique tentar curar as nossas feridas e levar-nos à verdade que somos, trazendo ao consciente aquilo que é inconsciente, o nosso Ego sente esta informação e movimento como ameaça, defendendo-se. Transformação implica necessariamente abdicarmos das nossas identificações – o que até agora foi útil e recurso, passa a ser prisão. Paradoxalmente, o Ego sente como morte aquilo que na verdade é fonte de vida. O objetivo da psicoterapia analítica e da psicanálise Junguiana é criar uma relação e um diálogo entre mundo interior e exterior, devolver a alma ao cliente, uma função natural no ser humano que Jung chamou de função religiosa da Psique (não no sentido das religiões institucionais, mas da reconexão com aspetos que foram esquecidos) procurando um equilíbrio entre as necessidades destes dois mundos, ambos reais, ambos presentes. Olhamos para o contexto de vida do cliente e para aquilo que ele acredita ser o seu eu, mas convidamos o inconsciente a manifestar-se através de sonhos, fantasias, imagens, intuições, expressão corporal e emoções. Nestas manifestações simbólicas encontramos aspetos até agora completamente desconhecidos, com os quais não nos identificamos ou apenas vemos nos outros, aspetos que foram esquecidos, mas também outros que podemos chamar de semi-conscientes, coisas que já sabemos, mas que continuamos a evitar ou a adiar. Este é o primeiro passo, o escutar aquilo que se quer revelar e encontrar expressão. Muitas vezes este encontro é, por si só, terapêutico e transformador. Outras vezes é preciso um trabalho de integração desta (nova) informação na vida consciente, criando condições para que o ego não a recuse e permita a sua expansão, expressando-se naturalmente em novas atitudes, escolhas e ações. 

Numa experiência psicadélica, todos os aspetos até agora descritos – aspetos biográficos e conscientes, aspetos semiconscientes, e também conteúdos do inconsciente pessoal e coletivo – podem visitar o psiconauta, procurando expressão e integração, numa lógica de cura e desenvolvimento naquele momento específico da sua vida. Estes aspetos podem ter um carácter mais objetivo como, por exemplo, memórias ou catarse emocional, ou serem expressos através de símbolos ou metáforas, a linguagem natural da Psique. Neste último caso, o seu sentido precisa de ser explorado, refletido, e ser objeto de atenção deliberada; caso contrário, voltará a afundar-se no inconsciente e continuará, de outra forma e noutro tempo, a procurar expressão. Qual é, então, a principal diferença entre o trabalho em psicoterapia ou psicanálise e uma experiência psicadélica Tipicamente a intensidade da experiência e a quantidade de material com que o Ego é confrontado. 

Ao descrevermos a Psicologia Analítica na sua dimensão teórica e clínica, percebemos que esta oferece um mapa privilegiado para perceber a fenomenologia experimentada numa viagem psicadélica, pois tem na sua génese e método a linguagem do material que emerge nestas experiências.

Face às semelhanças encontradas entre a intensidade e qualidade das imagens e experiências a que Jung teve acesso (hoje acessíveis nos seus diários de vida interior, os Livros Negros e o Livro Vermelho) e a fenomenologia partilhada por aqueles que experimentam estados não ordinários de consciência facilitados, nomeadamente, pelo uso de substâncias psicadélicas, muito se tem especulado se Jung teria recorrido a estas substâncias para facilitar estes processos. De acordo com aquilo que sabemos sobre Jung e a sua apreensão em relação ao consumo de substâncias psicadélicas (por um lado devido à consciência que tinha dos perigos de visitar o inconsciente de forma pouco preparada e sem o devido acompanhamento; e por outro lado pelo acesso limitado que teve a informação sobre estas substâncias e os seus usos terapêuticos), podemos com alguma segurança afirmar que ele empreendeu as suas “viagens” recorrendo a técnicas de alteração do estado de consciência não assistidas por substâncias psicadélicas, nomeadamente meditação e relaxamento. Sendo altamente introvertido e intuitivo, tinha um acesso privilegiado às imagens interiores nas suas dimensões pessoais e arquetípicas. 

Jung, “Livro Vermelho”, 2009

O uso de estados não ordinários de consciência (com ou sem substâncias psicadélicas) está a ser amplamente explorado e documentado, quer em termos do seu potencial terapêutico em diversas perturbações psicopatológicas, quer em termos de desenvolvimento pessoal e espiritual. Para além do muito que ainda há para perceber e explorar, parece claro que o seu potencial curativo está relacionado com a experiência que estes estados não ordinários de consciência permitem, em que o Ego, liberto das suas identificações e defesas típicas, se relaciona com aspetos do inconsciente pessoal e coletivo que mostram uma perspetiva diferente e alargada do eu, dos outros, do mundo. 

Particularmente transformadoras são as experiências transpessoais em que o Ego se percebe em relação com o transcendente, com aquilo que Jung chamou de numinoso. Tal como uma imagem vale mais que mil palavras, uma experiência vale mais que mil ideias, crenças ou desejos. Estas experiências transpessoais são amplamente relatadas por psiconautas em viagens psicadélicas. Em contacto com esta dimensão do ser, aspetos do eu são re-significados e outros descobertos, podendo a vida ganhar um novo sentido e uma nova perspetiva. 

Contudo, não podemos ser ingénuos e inconsequentes quando se trata de visitar o inconsciente nas suas diversas dimensões. Este imenso potencial criativo e de desenvolvimento e cura, tem energias e imagens que podem ser destrutivas se a estrutura psicológica não for suficientemente forte para poder conter e integrar o que é revelado, o tempo não for o certo, ou o contexto em que estas emergem não for seguro. Muitas situações traumáticas vividas pessoalmente ou coletivamente podem emergir e inundar o Ego, através de imagens aterradoras e emoções avassaladoras. Em terapia chamamos a estes aspetos a estrutura psíquica e a relação terapêutica. Em terapia assistida por psicadélicos, chamam-se set e setting. Por isso, é fundamental que estas viagens aconteçam de forma preparada, responsável e devidamente acompanhada. 

Neste momento de redescoberta do potencial terapêutico do trabalho em estados não ordinários de consciência, nomeadamente com recurso a sustâncias psicadélicas, a investigação aponta para a importância do antes, durante e depois da “viagem”, com um principal enfoque na integração do que foi experienciado na forma de imagens, memórias revisitadas ou insights. Muitas vezes, este material precisa de ser partilhado e refletido, de forma a expandir a compreensão não só do porquê mas também do para quê desta experiência, neste momento especifico da vida do psiconauta. Isto é particularmente importante numa experiência em estado não ordinário de consciência, face à quantidade e complexidade de material visitado. Jung colocou um enorme enfâse na questão da integração dos conteúdos revelados pelo inconsciente, na importância da tradução destes na vida consciente. Segundo Jung, o insight é o primeiro passo fundamental, mas depois há uma obrigação moral de o traduzir na vida. Muitas vezes, este processo é vivido com grande dificuldade pelo Ego e a relação terapêutica oferece o contentor necessário para que a mudança que já começou no indivíduo, se concretize. 

O mapa e o método da psicologia analítica são, em conjunto, uma forma privilegiada de ajudar a preparar, acompanhar e integrar a experiência psicadélica. 

Carl Gustav Jung (1875-1961)

Recursos adicionais sobre psicologia analítica e a experiência psicadélica:

A Jungian Approach to Psychedelic Integration, Entrevista com Maria Papaspyrou – Podcast Adventures Through the Mind, com James B. Jesso, 2019.
Confrontation with the Unconscious: Jungian Depth Psychology and Psychedelic Experience – Scott J. Hill, Aeon Books, 2013
Psychedelic Drugs and Jungian Therapy – Greg Mahr & Jamie Sweigart, Journal of Jungian Scholarly Studies, Vol. 15, No. 1, 2020

3 comentários em “Psicologia Analítica: Um Mapa de Viagem para a Experiência Psicadélica?”

    • Atualmente, não é permitido por lei em Portugal usar a maioria estas substâncias em qualquer forma de terapia acessível ao público de forma aberta. Informalmente, é provável que existam pessoas no nosso país a facilitar este tipo de terapias, embora não exista regulação desta atividade. A exceção é a cetamina, que tem efeitos psicadélicos e é um medicamento legal, e que já está a ser usado em pelo menos um hospital em Lisboa. É possível que em breve apareçam organizações privadas a usar este fármaco com esta finalidade, tal como já acontece em países como os EUA, o Canadá ou o Reuno Unido.

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