Texto: Sofia Teixeira e Pedro Teixeira
Ilustrações: Eva Anjos
É uma história que começa por ser igual a tantas outras. Até que deixa de ser. Nos anos 90, com 18 anos, Jules Evans tomou LSD numa festa. Teve uma bad trip: um medo irracional de tudo e de todos e uma sensação de ter estragado o cérebro para sempre. Esta é a parte da história que é igual a muitas outras: as bad trips ou experiências desafiantes, como muitos preferem hoje chamar-lhes, podem causar essas sensações temporariamente, durante o efeito agudo da substância. A parte diferente e atípica veio depois: nas semanas seguintes Jules continuou a sentir-se paranóico, ansioso em contextos sociais e a ter ataques de pânico. Os sintomas acabaram por desaparecer passadas umas semanas, mas voltaram passados alguns meses e duraram anos.
Jules Evans é hoje diretor do Challenging Psychedelic Experiences Project, que faz investigação em danos causados por psicadélicos, especialmente neste tipo de dificuldades pós-psicadélicas prolongadas. Porque aquilo que viveu, não sendo frequente, também não é único, havendo mesmo alguns casos semelhantes descritos na literatura científica, como o de uma mulher de 32 anos que desenvolveu um episódio prolongado de mania, psicose e depressão severa durante anos depois de ter consumido cogumelos mágicos.
À medida que tem crescido a popularidade dos psicadélicos para fins celebratórios, cerimoniais ou de autoexploração, têm também crescido relatos semelhantes a estes, sobretudo se o consumo é feito por pessoas com uma baixa literacia em boas práticas e redução de riscos. Em outubro de 2023, um estudo conduzido por investigadores ligados ao Challenging Psychedelic Experiences Project, entre eles Jules Evans, avaliou relatos de 608 pessoas que tiveram sintomas como ansiedade, distorções visuais após a toma, e desrealização – ou seja, uma amostra de pessoas que tiveram efeitos adversos – e mostrou que um terço dos inquiridos lidou com estas sintomas durante mais de um ano.
Ainda que estas histórias continuem a ser uma exceção, já se tornaram suficientemente frequentes para que haja clínicas focadas no problema. Como dá conta um artigo no jornal The Guardian, a Ambulanz Psychedelische Substanzen, Hospital Universitário Charité, em Berlim, atende em regime de ambulatório pessoas que tiveram problemas psicológicos persistentes – como flashbacks; perturbação da perceção persistente causada por alucinógenos (HPPD); despersonalização ou desrealização; ansiedade, ataques de pânico e crises psicóticas – depois de consumirem substâncias psicadélicas. A clínica tem recebido cerca de 10 a 15 pacientes por mês e usa uma combinação de terapia cognitivo-comportamental e medicação psiquiátrica para ajudar os pacientes a recuperarem a estabilidade psicológica.
Uma dificuldade em avaliar a prevalência e sobretudo as causas de experiências difíceis em contextos de vida real é o facto de raramente os investigadores terem acesso a dados objetivos sobre as condições em que o uso decorreu, as substâncias e (sobretudo) as doses ingeridas, ou se foi ou não seguido um conjunto de práticas tidas como prudentes – vulgarmente denominadas boas práticas de consumo ou estratégias de redução de riscos. É estimável que em muitos dos eventos de toma que resultaram em efeitos adversos, ou negativamente inesperados, este desfecho podia ter sido evitado com a adoção destas práticas. Em termos comparativos, pode imaginar-se qual seria a prevalência de acidentes de esqui alpino, incluindo lesões graves, na ausência de cursos breves de iniciação (presentes em muitas estâncias de esqui) para utilizadores menos experientes, uso de equipamento de proteção, mecanismos de controlo sobre o uso de pistas supervisionadas (vs. esqui off piste), ou alertas de mau-tempo. Mesmo com tudo isto, acidentes como o que vitimou Michael Schumacher em 2013, acontecem.
Mudando o foco para contextos de investigação com psicadélicos, uma revisão sistemática e metanálise publicada em setembro de 2024, que incluiu 114 estudos, com o total de 3504 participantes, mostra que não foram reportados efeitos adversos graves – que incluem agravamento da depressão, psicose e comportamento suicida – entre os participantes saudáveis e estes ocorreram em aproximadamente 4% dos participantes com perturbações neuropsiquiátricas preexistentes. Não foram reportados casos de mortes por suicídio, perturbações psicóticas persistentes ou perturbações de perceção persistente induzidas por alucinogénios após a administração de doses elevadas de psicadélicos clássicos.
Em síntese, os dados de ensaios clínicos com psicadélicos como a psilocibina, MDMA e LSD mostram um elevado perfil de segurança (física e psicológica), com registo de poucos efeitos secundários ou adversos relevantes. Contudo, eles não são inexistentes e precisam de ser mais estudados e divulgados. Um artigo de opinião publicado na prestigiada revista médica JAMA, faz um apelo para mais investigação e maior financiamento dedicado a este tema, bem como um esforço acrescido para informar o público acerca dos riscos dos psicadélicos.
Por exemplo, no ensaio clínico da Compass, destinado a avaliar a eficácia da psilocibina para depressão resistente ao tratamento, 9% dos pacientes com a dose mais alta (25 mg) e 7% dos pacientes da dose intermédia (10mg) reportaram efeitos adversos severos, (contra apenas 1% das pessoas no grupo da dose placebo de 1 mg) nas semanas seguintes à administração. Da mesma forma, no ensaio clínico de fase 3 da MAPS para avaliar a eficácia da terapia assistida por MDMA na Perturbação de Stress Pós-Traumático, também 7% dos participantes relataram aumento da ideação suicida, pese embora não tenha havido diferenças significativas entre o grupo que recebeu MDMA e o grupo de controlo, que recebeu placebo.
Há, no entanto, a considerar que o contexto de investigação apresenta uma série de salvaguardas – como a seleção dos pacientes, a investigação da sua história clínica e familiar, as condições controladas do contexto de administração e o acompanhamento psicoterapêutico – pelo que, entre a população geral, a possibilidade de efeitos adversos negativos poderá ser superior.
Por outro lado, em alguns destes ensaios, nomeadamente com doentes com depressão, as amostras contam com vários participantes com um historial de doença mental assinalável, ou seja, muito mais do que seria esperar na população em geral. Por exemplo, no estudo da Compass citado em cima, 27% dos participantes que tomou 25mg de psilocibina apresentava ideação suicida. Destes, apenas três apresentaram comportamento suicida três semana após a administração, sendo relevante que em nenhum caso se verificou uma resposta terapêutica à psilocibina (ou seja, não melhoraram da sua depressão). Neste estudo, nenhum participante relevou alterações significativas nos seus sinais vitais, em análises a marcadores no sangue, ou alterações no perfil eletrocardiográfico.
Há algumas condições psiquiátricas, como a esquizofrenia ou episódios psicóticos prévios, que são conhecidas como fatores que aumentam o risco de efeitos secundários persistentes. Sabe-se também que a HPPD é mais relatada entre adolescentes. E outra das razões que pode explicar situações de agravamento da saúde mental entre utilizadores de psicadélicos é a presença de perturbações da personalidade, conclui um grupo de investigadores do Centre for Psychedelic Research, do Imperial College London, num artigo publicado este ano. Entre o total de inquiridos que autoreportaram um agravamento ou deterioração da sua saúde mental (16%), uns expressivos 31% referiam um diagnóstico prévio de perturbação de personalidade.
Embora possa ser inquietante, o risco do agravamento da saúde mental não é o único risco – nem o maior – em contexto de uso pessoal. O perigo mais frequente é, na verdade, bastante mais prosaico e está relacionado com a segurança física do utilizador: um inquérito entre utilizadores de psilocibina mostra que 11% dos respondentes afirma que se colocaram a si mesmos ou a outros em risco de danos físicos durante a fase aguda dos efeitos – o que alerta também para a necessidade de literacia dos utilizadores, de forma a que adotem práticas que reduzam os riscos. Uma das mais importantes é ter alguém, sóbrio, a supervisionar a experiência.
O aumento da literacia é essencial para os utilizadores mas também para os profissionais de saúde, de forma a que saibam atender os utilizadores que experienciam problemas, por exemplo, no contexto da medicina de urgência e emergência: é sabido que um apoio adequado reduz a probabilidade dos efeitos secundários negativos se estenderem no tempo.
Nesse âmbito, tem sido mencionado um fenómeno ainda pouco estudado: o uso de trip-killers pelo utilizador, de forma a acabar com uma experiência desafiante. Num artigo publicado este ano no Emergency Medical Journal, os investigadores identificaram e analisaram 709 publicações (posts) no Reddit, entre 2015 e 2023. A maioria das publicações sugeria o uso de alprazolam (ansiolítico), quetiapina (antipsicótico) e trazodona (antidepressivo) para “cortar” o efeito agudo da experiência. A recomendação prática que sai daqui é que os médicos do serviço de urgência estejam despertos para esta prática e perguntem ao paciente ou ao acompanhante acerca do uso desses medicamentos quando suspeitam do uso de substâncias psicadélicas, antes da administração de benzodiazepinas ou antipsicóticos.
Em síntese, não sendo desprezível, o risco de uma experiência psicadélica causar efeitos adversos prolongados é baixo em contextos de uso pessoal não-supervisionado, e é ainda mais reduzido em contextos com acompanhamento por alguém preparado. Sobretudo no primeiro caso, o risco pode ser minorado com a adoção de boas práticas. Risco zero é difícil de encontrar na maioria das atividades humanas e decidir ter uma experiência psicadélica não é diferente. Saber calcular o risco-benefício antes desta decisão é a prática mais sensata de todas.
SABER MAIS
Em Portugal, quem tenha tido experiências desafiantes com psicadélicos que sinta que precisa de integrar, pode contactar a associação Kosmicare, que tem um serviço de aconselhamento psicológico e/ou psiquiátrico ou recorrer a um profissional informado sobre psicadélicos e estados ampliados de consciência. Para apoio virtual, é possível recorrer aos serviços do projeto Fireside ou PsyCareUK (ambos em inglês).
Neste artigo é possível consultar uma lista de conselhos para alguém saber o que fazer quando acompanha alguém que está a ter uma experiência, mesmo não tendo formação específica para o efeito. Este processo é frequentemente denominado “facilitação” ou “trip sitting”.
No livro “Psicadélicos: Em Português” publicado em 2024, é possível encontrar uma lista extensa de fatores de risco para experiências psicadélicas e conselhos para como os evitar ou minimizar, incluindo como escolher um local para ter uma experiência.