Ciência

Como Surgiu e Como Funciona a Psicoterapia Assistida por Ketamina?

In the Fall of 1972, I was introduced to the strangest psychoactive substance I have ever experienced in the 50 years of my consciousness research”.

Estas palavras foram proferidas por Stanislav Grof e estão incluídas no livro de 2016 The Ketamine Papers de Phil Wolfson & Gleen Hartelius. O renomeado psiquiatra terá guiado mais sessões de psicoterapia com psicadélicos em todo o mundo e referia-se a um dos fármacos mais curiosos já sintetizados em laboratório – e que, ao contrário dos psicadélicos clássicos, pode ser actualmente prescrito por qualquer médico.

A ketamina foi sintetizada pela primeira vez em 1962 e aprovada como anestésico em 1970. No entanto, cedo se percebeu que a ketamina causa efeitos psicoactivos transitórios – que inicialmente foram descritos como “dissociativos” e mais tarde como “psicadélicos”. Os primeiros relatos sobre o uso de doses infra-anestésicas de ketamina para o tratamento de perturbações psiquiátricas foram publicados nos anos 1970s. As propriedades psicoativas da ketamina levaram então à sua utilização pelo psiquiatra Evgeny Krupitsky na Rússia, na década de 1990, que combinou as suas propriedades com suporte/intervenção psicológica para o tratamento de dependências de substâncias, num modelo semelhante à psicoterapia assistida por psicadélicos que tinha sido desenvolvida nos anos 50/60 e entretanto interrompida pelas restrições legais. No entanto, a ketamina também se tornou uma substância de uso recreativo devido às suas propriedades alucinogénicas e seus efeitos euforizantes, e acabou por ser banida na Rússia no final do século XX.

Nessa altura, em paralelo, vários grupos começaram a estudar a administração de ketamina para o tratamento de Depressão Resistente, mostrando elevada eficácia na redução de sintomas depressivos. Estes estudos utilizaram ketamina intravenosa, sendo este o primeiro tratamento para a depressão que exerce efeitos no espaço de horas após uma única administração – os antidepressivos e a psicoterapia demoram semanas até atingir efeitos terapêuticos. No entanto, os benefícios de um modelo de tratamento exclusivamente farmacológico com ketamina parecem ser relativamente temporários e, na maioria dos pacientes, os sintomas depressivos reaparecem 10-14 dias após a última infusão.

Ketamina para administração intramuscular ou intravenosa

Inicialmente pensava-se que os seus efeitos terapêuticos eram exclusivamente causados por um aumento da neuroplasticidade cerebral que ocorre após modificação dos níveis de glutamato. Contudo, vários estudos têm demonstrado que a ketamina causa um estado transitório de actividade cerebral com muitas semelhanças ao causado pelos psicadélicos clássicos, embora com menor duração. Mais especificamente, foi demonstrado que a ketamina causa uma desintegração da conectividade funcional do default mode network e aumenta a diversidade de sinal no cérebro, causando um estado de maior entropia e menor modularidade, idêntico ao encontrado com psilocibina ou LSD.

Do ponto de vista psicológico, em estudos qualitativos com análise fenomenológica da experiência os pacientes descrevem que o estado não-ordinário de consciência induzido pela ketamina lhes permitiu terem uma perspectiva diferente sobre a sua vida, com efeitos transformadores positivos que vão para além da redução dos sintomas depressivos. Para além disso, tal como tem sido demonstrado com psilocibina, foi demonstrado recentemente que uma experiência de dissolução do ego com valência positiva durante a administração de ketamina está associada a uma melhor resposta antidepressiva.

Estas semelhanças entre a ketamina e os psicadélicos clássicos, bem como o seu estatuto legal que permite a prescrição médica, fez com que vários centros clínicos (e.g., Awakn Clinics no Reino Unido, OVIC Clinics na Alemanha, Polaris Insight Center e Field Trip Health nos EUA) tenham começado a oferecer um modelo de psicoterapia assistida por psicadélicos utilizando ketamina, com o objectivo de alcançar benefícios sustentados de longa duração. Em Portugal, há pelo menos uma clínica em Lisboa a oferecer o mesmo tipo de serviço, sendo expectável que outras possam surgir em breve. Existem também serviços de psiquiatria em hospitais públicos portugueses a administrar, ou a planear administrar este tipo de terapia.

A psicoterapia assistida por ketamina, tal como a psicoterapia assistida por psicadélicos clássicos (serotoninergicos), é um processo que consiste em três fases: preparação, exploração de estados alterados/não-ordinários de consciência e integração. As principais diferenças são que a duração da sessão de exploração é significativamente mais curta (aproximadamente 1 hora de experiência mais intensa, e depois 2 horas até a pessoa regressar ao seu estado normal) e que neste modelo a ketamina é administrada semanalmente durante 4 a 10 semanas (com psicoterapia de integração no dia seguinte a cada administração). Para além disso, a via de administração que tem sido mais utilizada recentemente é a injecção intramuscular, embora vários centros ainda utilizem a administração intravenosa e alguns centros utilizem formulações orais/sublinguais.

Sessão de psicoterapia assistida por ketamina

Pensa-se que o estado não-ordinário de consciência induzido pela ketamina retira o indivíduo do seu estado de consciência habitual, a qual é dominada por padrões de pensamento e comportamento que se podem tornar disfuncionais, mostrando-lhe uma dimensão mais aberta e flexível da mente e do seu funcionamento. A experiência pode fazer com que o indivíduo compreenda que as suas crenças sobre si próprio são narrativas construídas e moldáveis – e portanto modificáveis – e à consequente revisão dessas crenças. A relação de confiança com os terapeutas fornece apoio a essa descoberta, diminuindo a ansiedade que pode surgir em alguns momentos. Essa mesma relação terapêutica – objeto de um importante estudo recente – também facilita o trabalho de integração das descobertas, possibilitando um novo modo de estar na vida com maior valorização e aceitação de si mesmo.

Durante os próximos anos espera-se que novos resultados de ensaios clínicos com este modelo de tratamento comecem a surgir. No entanto, tendo em conta que a patente da molécula já terminou o seu prazo, os laboratórios farmacêuticos têm pouco interesse nesta abordagem. Enquanto a psicoterapia assistida por psicadélicos clássicos como a psilocibina não é aprovada, a psicoterapia assistida por ketamina é um modelo de tratamento com um elevado potencial para tratar pessoas que sofrem de depressão e/ou outras perturbações psiquiátricas.

Referências Úteis

  • Wolfson, P. & Hartelius, G. The Ketamine Papers. (MAPS, 2016)
  • Krupitsky, E. M. & Grinenko, A. Y. Ketamine psychedelic therapy (KPT): a review of the results of ten years of research. J. Psychoactive Drugs 29, 165–183 (1997).
  • Bokor, G. & Anderson, P. D. Ketamine: An update on its abuse. J. Pharm. Pract. 27, 582–586 (2014).
  • Bahji, A., Vazquez, G. H. & Zarate, C. A. Comparative efficacy of racemic ketamine and esketamine for depression: A systematic review and meta-analysis. Journal of Affective Disorders (2021). doi:10.1016/j.jad.2020.09.071
  • McInnes, L. A., Qian, J. J., Gargeya, R. S., DeBattista, C. & Heifets, B. D. A retrospective analysis of ketamine intravenous therapy for depression in real-world care settings. J. Affect. Disord. 301, 486–495 (2022).
  • Zacharias, N. et al. Ketamine effects on default mode network activity and vigilance: A randomized, placebo-controlled crossover simultaneous fMRI/EEG study. Hum. Brain Mapp. 41, 107–119 (2020).
  • Sumner, R. L. et al. A qualitative and quantitative account of patient’s experiences of ketamine and its antidepressant properties. J. Psychopharmacol. 35, 946–961 (2021).
  • Dore, J. et al. Ketamine Assisted Psychotherapy (KAP): Patient Demographics, Clinical Data and Outcomes in Three Large Practices Administering Ketamine with Psychotherapy. J. Psychoactive Drugs (2019). doi:10.1080/02791072.2019.1587556
  • Muscat, S.-A., Hartelius, G., Crouch, C. R. & Morin, K. W. Optimized Clinical Strategies for Treatment-Resistant Depression: Integrating Ketamine Protocols with Trauma- and Attachment-Informed Psychotherapy. Psych 2022, Vol. 4, Pages 119-141 4, 119–141 (2022).

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