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Leia AQUI uma versão reduzida deste artigo, publicado no jornal PÚBLICO e da autoria de Pedro Teixeira, com o título: “Quanto custa nunca experimentar uma substância psicadélica?”
Leia AQUI um artigo subsequente, no jornal PÚBLICO, da autoria de Albino Oliveira-Maia, em parte como reação ao artigo anterior, com o título “Quem vai pagar o preço do apelo ao uso de psicadélicos?“.
E AQUI uma resposta de Pedro Teixeira, publicada no mesmo jornal com o título “Sim, vale a pena ponderar racionalmente o risco de (não) utilizar psicadélicos”.
(nota: todos os artigos em cima são exclusivos para assinantes do jornal).
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O conhecido jornalista e autor norte-americano Michael Pollan referiu que, mais do que o seu potencial celebratório ou recreativo, o uso pessoal de psicadélicos contém um elevado potencial “re-creativo” – ou seja, a capacidade de nos ajudar a recriar e transformar as nossas vidas. Na mesma linha, João Taborda da Gama, advogado e comentador que trabalha em legislação e políticas sobre drogas, disse que na nossa geração não vamos encontrar um tema de mudança social tão grande como o dos psicadélicos. Steve Jobs confessou que provavelmente não teria inventado o iPhone se não tivesse usado LSD, e Kary Mullis disse o mesmo em relação à conceção da técnica de PCR, que lhe valeu o prémio Nobel. Com maior ou menor visibilidade junto do grande público, a lista de personalidades que referiram ter beneficiado do uso de psicadélicos é extensa: dos The Beatles, Jimi Hendrix e Sting, a Aldous Huxley e Michel Foucault, passando pelos podcasters Trevor Noah e Joe Rogan, o pugilista Mike Tyson e o Príncipe Harry, até atores como Elizabeth Taylor, Cary Grant, Brad Pitt, Sharon Stone e Robin Williams.
Considerando a presença e o uso de psicadélicos nos EUA nos anos 60, associados à “revolução hippie” e aos movimentos estudantis e de oposição à guerra, bem como o seu possível papel nas lutas pelos direitos das minorias e, mais tarde, no surgimento e expansão do movimento New Age (sem esquecer, pela negativa, as políticas falhadas da “guerra às drogas”), muitos questionam se o desenvolvimento cultural no Ocidente no século XX teria sido o mesmo sem o aparecimento e o uso destas substâncias.
A grande diversidade de substâncias, dosagens e efeitos
Falar de psicadélicos como uma entidade homogénea tem os seus limites. Para além dos empatogénicos com efeitos mais ou menos estimulantes (como o MDMA, o 2C-B ou a mefedrona e os seus análogos) e dos chamados “psicadélicos clássicos” como o LSD, os cogumelos mágicos, a mescalina ou o DMT, presente na bebida ayahuasca, existe ainda a ketamina (ou cetamina), usada no SNS e em várias clínicas portuguesas com finalidade psicoterapêutica. E ainda o 5-MeO-DMT e a ibogaína, frequentemente descritos como os psicadélicos mais potentes de todos: o 5-MeO-DMT proporciona uma vivência profunda que dura cerca de 15 minutos, enquanto os efeitos da ibogaína, usada em centros de reabilitação para tratar dependências como as de heroína ou álcool, podem prolongar-se por mais de 15 horas.
Uma das distinções mais importantes é a que separa substâncias que induzem viagens alucinogénicas (ou trips psicadélicas), como o LSD ou a psilocibina (presente nos cogumelos mágicos), conhecidas pela sua capacidade de expandir a mente – significado aliás contido na própria palavra psicadélico, com origem no grego psyche (mente ou alma) e délio (que manifesta ou revela); e as substâncias empatogénicas, sendo a mais conhecida o MDMA (ou ecstasy) que, tanto como promover o êxtase da dança festiva, induzem uma capacidade aumentada de nos ligarmos emocionalmente ao outro, com abertura, empatia e sem receios.
A par da diversidade de substâncias, o utilizador de psicadélicos tem também ao dispor, para todas elas, uma variedade considerável de doses, com efeitos muito diferentes. Por exemplo, ingerir uma microdose, uma dose standard (média), ou uma dose elevada (“terapêutica”) de substâncias como a psilocibina ou o LSD resulta em experiências muito distintas e com perfis de segurança também completamente diferentes. Entre a diversidade de substâncias e as diferentes doses possíveis, levará décadas à Ciência para decifrar tudo o que é possível obter destas experiências. No entanto, é hoje certo que devemos considerar experiências com psicadélicos num plano bastante mais vasto do que apenas o de induzirem uma “viagem psicadélica“, que é frequentemente vista como demasiado intensa, assustadora ou arriscada para experimentar.
O balanço risco-benefício dos psicadélicos
Falar dos riscos do uso de psicadélicos exige uma análise criteriosa, uma vez que há uma grande discrepância entre a verdade científica sobre estes riscos – que classifica as substâncias psicadélicas como as mais seguras entre as drogas mais consumidas atualmente (incluindo o tabaco e o álcool) – e a perceção do mesmo risco por parte cidadão comum, que é habitualmente muito negativa. Esta perceção resulta não só da falta de literacia do público sobre drogas em geral, mas também do preconceito e estigma promovidos desde os anos 70, invariavelmente por razões alheias ao conhecimento técnico sobre a sua toxicidade e real potencial aditivo. Ainda hoje, é com grande surpresa que jornalistas e outras pessoas informadas recebem a notícia de que o risco de adição da grande maioria dos psicadélicos (por exemplo, o LSD) é tão baixo que é considerado desprezável por todos os especialistas da área, desde há várias décadas.
Menos falado e talvez mais controverso é o “risco” de nunca consumir psicadélicos, bem ilustrado na afirmação do conhecido neurocientista e autor Sam Harris, no podcast de Tim Ferriss: “Se as minhas filhas, quando tiverem a idade apropriada, nunca tiverem uma experiência com um psicadélico, terão perdido um dos grandes rituais de passagem da vida.” O problema é que quantificar o risco de oportunidades perdidas é não só difícil numa área tão complexa como esta, como também uma tarefa amplamente negligenciada no contexto de proibição, estigmatização e receios generalizados em torno dos alegados riscos das drogas, psicadélicas ou outras. A verdade é que, por cada incidente como o que vitimou o ator Matthew Perry após o consumo de ketamina (ironicamente, um dos anestésicos mais seguros usados na medicina) – e que reacendeu receios em relação ao uso pessoal de drogas – existem centenas, senão milhares, de relatos de pessoas que afirmam que os psicadélicos mudaram as suas vidas para melhor. Muitos referem mesmo que existe um “antes e um depois” das suas primeiras experiências com cogumelos mágicos ou com MDMA.
Este é um fenómeno que começa também a ser avaliado cientificamente. No mais recente destes estudos, que contou com 581 utilizadores de psicadélicos, cerca de 83% destes relataram pelo menos uma grande mudança de vida (“major life change“) influenciada pelo uso de psicadélicos. As mudanças de vida foram quase invariavelmente avaliadas como “muito positivas” e observou-se uma relação entre a frequência de uso de psicadélicos nos últimos cinco anos e o número total de grandes mudanças de vida. As dimensões da vida avaliadas e a percentagem de participantes que relataram mudanças em cada uma delas foram:
- Objetivos (53%)
- Valores (54%)
- Religião / espiritualidade (49%)
- Atividades sociais (37%)
- Hábitos alimentares / dieta (34%)
- Ocupação/carreira (32%)
- Passatempos (29%)
- Visões políticas (15%)
- Sexualidade (13%)
- Estado civil ou mudança de parceiro(a) não matrimonial (12%)
A pergunta central é esta: Quantas pessoas deixam de experimentar psicadélicos, e de potencialmente beneficiarem dos seus efeitos, devido às políticas proibicionistas, ao estigma e aos correspondentes receios, em grande parte infundados, que estas substâncias levantam?
Novos utilizadores, novos contextos e novos motivos para usar psicadélicos
Os psicadélicos e os empatogénicos têm um reconhecido potencial terapêutico e ambos podem ser usadas exclusivamente para efeitos hedónicos ou de celebração. Menos conhecido, contudo, é o seu potencial para abrir a porta para situações e práticas com aplicação e benefício não só na saúde mental mas também na saúde física e comportamental (por exemplo, melhorar a dieta), para aprofundar relações (conjugais, familiares, fraternais, ou até com o planeta ou com o divino), para estabelecer ligações mais próximas com a Natureza, para enriquecer a sexualidade, estimular a criatividade, ou elicitar sentimentos mais profundos de compaixão e amor. No mesmo sentido, estima-se que o grupo de utilizadores de substâncias psicadélicas que mais tem aumentado são os que procuram esta prática para conhecer-se melhor, terem experiências significativas (muitas vezes em grupo), ou para compreenderem e melhorarem algum aspeto da sua vida (o chamado healing).
Exemplos de motivos e contextos possíveis para o uso de psicadélicos.
Adaptado de Teixeira P. “Psicadélicos: Em Português”. Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2024.
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Para ajudar a caracterizar estas novas perpetivas sobre o uso de psicadélicos, pode falar-se no valor intrínseco e também no potencial heurístico da experiência psicadélica, sobretudo quando ocorre num contexto propício, com conhecimento das melhores práticas (ou seja, minimizando o risco real) e realizada por motivos refletidos.
O valor intrínseco de uma atividade pode definir-se como a recompensa ou benefício sentido durante a atividade, independentemente do que dela resulte após o seu fim. Trata-se de apreciar a natureza e a riqueza do processo em si mesmo, em detrimento do resultado. No caso de uma experiência psicadélica, isto pode ter a forma de prazer estético (por exemplo, admirar uma obra de arte de uma forma nova, ou ver a súbita beleza de um objeto ou de um pequeno detalhe no qual nunca reparámos), prazer físico ou corporal (por exemplo, durante o sexo ou enquanto dançamos), o prazer de partilhar com amigos um espaço liminal (um estado de transição, um momento ou lugar entre o que era e o que está por vir), ou simplesmente apreciar como a mente pode expandir-se de forma rica e surpreendente em pensamentos, emoções ou memórias. No seu artigo de 2020 “A psychologically rich life”, Besser e Oishi argumentam que uma vida psicologicamente rica, caracterizada pela complexidade e em que a pessoa passa por uma variedade de experiências interessantes e emoções profundas deve fazer parte do que entendemos por uma “boa vida”.
Por outro lado, o ChatGPT define potencial heurístico como “a capacidade de algo (uma ideia, um método, uma técnica, ou até uma abordagem geral) de servir como uma ferramenta útil para resolver problemas ou descobrir soluções em situações complexas, com o objetivo de gerar novos insights, abordagens ou explicações. Em termos simples, está relacionado com o poder de um conceito ou método para orientar a exploração e facilitar o processo de descoberta ou inovação, especialmente em contextos nos quais a solução exata ou uma resposta clara não é imediatamente aparente”. De entre as facetas do potencial heurístico, podem enumerar-se a exploração e a descoberta, a resolução de problemas, a facilidade e eficiência cognitiva e a sua vasta aplicação na sociedade em geral (na ciência, psicologia e psicoterapia, filosofia, inovação, etc.). Mas também o descobrir de novas soluções pessoais para as tarefas e os desafios da vida comum, desde lidar com o elevado uso de plataformas digitais pelos nossos filhos, até decidir praticar mais atividade física ou deixar de fumar.
Quando não utilizar psicadélicos
É importante ter presente que existem casos, situações e contextos em que o uso de psicadélicos não é uma boa ideia. É geralmente desaconselhada a toma de psicadélicos a pessoas que apresentam uma elevada instabilidade psicológica ou emocional, pessoas com historial de perturbação bipolar ou perturbação psicótica (por exemplo, esquizofrenia), ou pessoas a usar uma medicação ou suplementação que possa interagir negativamente com a substância ingerida. No caso particular do MDMA, e embora seja uma substância considerada bastante segura e seja usada por centenas de milhares de pessoas todos os anos, existem alguns riscos físicos que devem ser considerados. Os psicadélicos são substâncias poderosas e o seu uso em doses elevadas deve merecer um escrutínio sério e baseado na melhor informação.
Felizmente, abundam hoje os recursos disponíveis para ajudar o utilizador na adoção de boas práticas no uso de psicadélicos e outras drogas. Em Portugal, podem encontrar-se várias organizações dedicadas à literacia pública e à divulgação cultural e científica desta temática, como a Associação Kosmicare, o projeto SafeJourney e a associação científica SPACE. Estão igualmente disponíveis, em português, livros como “Como Mudar a Sua Mente” (subtítulo: “O que a nova ciência dos psicadélicos nos ensina sobre consciência, morrer, dependência, depressão e transcendência”), “Psicadélicos em Saúde Mental” ou, mais recentemente, “Psicadélicos” (subtítulo: “Um guia completo sobre as substâncias revolucionárias que podem mudar a sua vida”) e “Psicadélicos: Em Português”, este último publicado na coleção de ensaios da Fundação Francisco Manuel dos Santos.
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Talvez apenas comparável com uma vida repleta de viagens até locais do planeta que nos ensinam e abrem a mente – ou seja, que nos “dão mundo” e por vezes nos transformam para sempre; ou ao contacto regular com a riqueza e a profundidade das (“grandes”) artes, design ou literatura – que nos transportam ao limite do imaginário criativo e da sabedoria humana – as experiências com psicadélicos podem permitir episódios de serenidade, comunhão e plenitude a partir dos quais a perspetiva sobre a vida e tudo o que ela pode conter – ou o que nela ainda é possível desenredar, desde traumas passados a objetivos desfasados das necessidades psicológicas mais básicas – pode abrir para não mais fechar.
“O homem que retorna pela Porta na Parede nunca será bem o mesmo homem que saiu. Ele será mais sábio, mas menos seguro, mais feliz, mas menos satisfeito, mais humilde em reconhecer a sua ignorância e, ainda assim, mais bem equipado para entender a relação das palavras com as coisas, do raciocínio sistemático com o mistério insondável que tenta, sempre em vão, compreender.” (Aldous Huxley, em As Portas da Perceção)
Tal como escasseiam, atualmente, as formas legais e socialmente aceites de utilizar psicadélicos, também escasseiam, cada vez mais, as razões válidas para correr o risco de nunca os experimentar.
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